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segunda-feira, 26 de novembro de 2012

AS MINHAS CALÇAS NOVAS E O DESEJO DE NÃO SER PATRÃO


O dia de festa aproximava-se e eu já tinha ordem para ir ao alfaiate fazer a prova das calças de cotim que a minha mãe tinha mandado fazer. O tecido, comprado no Sr. Antoninho, dava para mim e para o meu pai, que entretanto fizera questão de que as minhas teriam alças, uma espécie de suspensórios, visto que eu era ainda muito novo e não tinha cinta para as segurar com cinto. Bom, o certo é que não havia cinto nenhum.

Por sorte, o meu pai acedera à minha insistência para que as ditas, em vez de alças, fossem dotadas de presilhas e assim fui a correr ao alfaiate e disse-lhe que queria as calças com presilhas para usar cinto. A tempo ou não, o pobre homem lá fez a ratificação e ainda as dotou de um pequeno bolso sob a zona frontal do lado direito, destinado ao dinheiro. O alfaiate estreou o bolsinho e deu-me dois tostões, vinte centavos.

O cinto, esse viria da feira do Crasto que se realizava por esses dias, assim como a camisa de terilene, que assentava que nem uma luva.

Na manhã do dia quinze, ouviu-se a banda da música a tocar e esse foi sem duvida o toque que faltava para me aperaltar e ir ver mais de perto os inícios das festas.

A minha madrinha, ao ver-me tão catita, disse a um seu irmão há muitos anos radicado em Lisboa: O Armando faz anos amanhã, mas hoje é que precisa da prenda, para gastar na festa. O rapaz, na altura um trintão, puxou de um pequeno porta-moedas e do seu interior tirou uma moedinha que era nada mais nada menos que vinte e cinco tostões, 2.50 em prata, ainda que pequena, era bastante valiosa, ainda mais nas mãos de um garoto da minha idade.

Nesse dia o almoço era melhorado e estou bem certo que o menu era coelho com arroz, se bem que o coelho em minha casa não era novidade já que o meu pai era caçador e coelho era o que não faltava. Lembro-me muito bem que não via a hora de ir para o arraial, exibir as minhas moedinhas, que iam, certamente, encher de inveja os meus colegas, que não teriam por certo a mesma sorte que eu. Meia dúzia de músicos passaram à minha porta, com os instrumentos às costas, cujo destino era a casa do mordomo, onde fora feito o ramo de ofertas destinadas ao leilão. Este ano havia uma grande inovação, ao contrário de serem os rapazes a transportar o ramo, este ia em cima de um carro de vacas, previamente enfeitado e puxado por uma bonita junta, propriedade do Manuel Cerejinha com alcunha de “BARRACAS”. No interior do ramo, foi feito um compartimento que albergava um belo vitelo, adquirido pela população do Eido-Além. Esta ousadia de jungir, que aqui se diz junguer, as vacas no dia santo trouxera vários dissabores aos autores, já que o padre não gostou da cena e quase, quase os excomungava, não fosse a intervenção de algumas pessoas bem posicionadas junto do clérigo e as coisas tornar-se-iam muito complicadas. No entanto, tudo acabou em bem.

A marcha lá seguiu e eu sempre com cuidados redobrados, ia a espaços apalpando as minhas moedinhas, não fossem elas por magia saltar do bolso e estatelarem-se na sinuosa calçada onde, por certo, não demorariam a mudar de mão. À medida que nos aproximamos do lugar dos festejos, o palpitar do meu coração era cada vez mais forte e eu já ia pensando em como gastaria aquela pequena fortuna. Dava pelo menos para dois pirolitos e meia dúzia de rebuçados, ou comprava um brinquedo ou outra coisa qualquer, quando chegasse o momento logo veria como seria a melhor aplicação. No largo da Praça, junto ao Pelourinho, o rancho parara e os convivas gritavam e bebiam vinho de um garrafão, por aquela altura a sede já não era nenhuma, mas mesmo assim as goelas eram constantemente fustigadas por fortes tragos do famoso líquido cantante!

Chegara o momento decisivo e que eu já mais esquecerei, um primo meu, afilhado de meu pai, acercou-se de nós e com um gesto, premeditado, quiçá ensaiado, ergueu as mãos e pediu a bênção ao padrinho, que respondeu instintivamente emocionado com o tradicional “DEUS TE ABENCOE”, ao mesmo tempo que com um gesto preciso tirou do bolso das calças um velho porta-moedas, que abriu, mas apenas exibiu algumas notas de vinte e fez saber que mais tarde daria alguma coisa ao rapaz, assim que houvesse dinheiro trocado.

Irrefletidamente, eu dirijo-me ao meu pai e num gesto glorioso disse: Pai, tenho aqui vinte e cinco tostões, se quiser eu empresto-lhos, tendo ele respondido de pronto: Dá-os ao Ilídio, que eu daqui a nada já tos dou. O meu primo pegou na moeda e ó pernas para que te quero, vai dali aos brinquedos, comprou uma bonita camioneta, que de pronto me veio mostrar. Fiquei petrificado e vou direito ao meu pai pedir-lhe o dinheiro, pois já sabia onde o iria gastar. Pois sim, o meu pedido caiu em saco roto, não obtendo sequer resposta. Ainda insisti mas sem resultado. Percebi então que à medida que o tempo passava as hipóteses de reaver a minha moeda eram cada vez mais remotas, isto porque a bebida passava a comandar as mentes e não tardaria nada o cérebro ia ser comandado pela bebida e aí sim, era o fim da minha ilusão. Não me enganei no meu raciocínio, os factos estavam dados como provados e aquela questão era assunto perdido, jamais iria reaver o meu pecúlio, que tão prematuramente mudara de mão e o que tornava ainda mais doloroso o meu penar, era o outro garoto exibir triunfantemente o brinquedo que podia ser meu. 

A festa para mim já não tinha sentido, fora enganado, por apenas ter um gesto de boa vontade e agora restava-me apenas vinte centavos, que não davam para nada. O dia terminava e eu, angustiado, aguardava o dia seguinte que era o meu aniversário, mas que valor tinha isso, se não havia prendas? Apenas me restava conformar-me com a situação, o que não era de todo fácil, já que o meu tio João também comprara uma camioneta igual à do outro e para cúmulo, fazia questão de não me deixar brincar com ela. Assim, quando eu lhe pedia para me deixar conduzir o veiculozinho, ele argumentava muito simplesmente: Tu fazes de patrão e eu de empregado, logo quem trabalha sou eu tu apenas mandas. Eu voltava à carga e lá ia dizendo, muito meigamente: Ó tio deixe-me lá ser agora o empregado e você o patrão! Mas qual quê! Nem assim o demovia! Ele é que era o empregado e assunto encerrado.
                                   
  Epílogo
Não me recordo do ano em que isto aconteceu, mas eu não teria mais de nove ou dez anos. Quero ainda com este meu conto, preservar a memória dos intervenientes, que já todos partiram e de uma forma bastante prematura. Não guardo rancor de nenhum deles, apenas boas recordações, isto foi apenas um episódio na minha história de vida que, agora, muito faz rir os meus filhos!

Escrito aos 04 dias de Setembro de 2012

2 comentários:

  1. Já estou farta de me rir com esta história! Ouvi-la contar na primeir pessoa é muito mais emocionante!

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  2. Sr Armando fiquei fascinada pelos seus contos, por serem tão realistas que nos faz experimentar a ver um filme histórico, mas a sua personagem transmite valores morais.
    Desses contos ninguém se cansa, só queremos l(v)er mais outro.
    As fotografias são mágicas.
    Vou acompanhar o seu trabalho deste lado de cá.
    Gilda Marisa Coelho

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