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sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Fazer bem e não olhar a quem


As viagens a Lamego eram frequentes, quer pelas festividades dos remédios quer pela venda de carvão ou ainda pela ida para as vindimas ou mesmo para apanhar o comboio para o Porto, o certo é que era mais acessível esta cidade do que a sede do distrito. Ali acorria toda a espécie de negociantes desde os carvoeiros, aos retalhistas de fazendas, vinhateiros, tamanqueiros…
           
Era uma cidade onde não faltavam aventureiros das mais variadas camadas da sociedade, muitos deles provocadores, sempre com a intenção de mostrarem a sua valentia, quer com o pau de junco, com a faca ou mesmo com arma de fogo. Os conflitos eram de tal ordem que as autoridades, mal armadas e mal formadas, temiam sempre que eram chamadas a ocorrer a algum desacato. Raras eram as vezes em que a desordem não descambava para o pior, chegando em alguns dos casos a desarmarem os pobres coitados e pô-los a fugir a sete pés.
            
Às portas de Lamego, ali pela localidade do Rossas, os assaltos sucediam-se com muita frequência, cujo modelo de assalto versava sempre em o assaltante pedir lume ao viajante ou então um cigarro, de forma que este, quando levava a mão ao bolso, o meliante anunciava o assalto. Há relatos até que, certo dia, um fulano passava por ali descontraído e é abordado por um ladrão, que lhe pede lume para acender o cigarro, porém, quando este meteu a mão ao bolso, em vez de lume sacou de um revolver e apontou-lho à cabeça dizendo-lhe: Este serve ou queres mais? O até então valente assaltante transformou-se num “rato” e deu às de vila Diogo, não esperando para ver qual era a qualidade do lume que lhe iria acender o cigarro. Muitas mais histórias se contam que a serem verdadeiras eram de arrepiar. Ora desta forma o viajar sozinho e as más horas não era de todo recomendado, se bem que os alvos mais apetecidos eram aqueles que por norma transacionavam mais dinheiro como negociantes de gado ou de fazendas. A acrescentar a esta bandidagem vinha o problema dos lobos, nomeadamente para aqueles que tinham de atravessar a serra, pois estes animais quantos mais eram, menor” ausio” faziam como então se dizia.
            
Certo dia um pobre tamanqueiro acompanhado de um dos seus aprendizes, cruzou a Cascalheira e a serra de Santa Helena e rumou a Lamego na esperança de adquirir o couro para o fabrico do tamanco. Com eles levavam um pachorrento jumento, para no regresso transportar a mercadoria. Quando voltavam, ali por Arguedeira, foram surpreendidos por uma forte trovoada, que não tardou em descambar em chuva torrencial. Sem outra alternativa abrigaram o animal debaixo de uma varanda e eles correram a uma taberna que estava próxima. Longe estavam de adivinhar que no interior da loja os esperavam alguns problemas. E que problemas!
            
Após tomarem o seu copito, surge lá dum canto um fulano que se dirigiu a eles num tom ameaçador proferindo as seguintes palavras: Ora até que enfim, é hoje que o senhor mas vai pagar! Ai vai, lá isso vai! E com juros.
            
O incrédulo ancião mirou o fulano de alto a baixo e num tom bastante calmo balbuciou: Não creio conhecer o senhor de lado algum, quanto menos dever-lhe alguma coisa! Porém o outro insistiu: Deve sim, mas hoje não vai sair daqui sem pagar!
            
Como era de esperar este discurso não agradava ao homem, porém as circunstâncias aconselhavam calma e ponderação, algum gesto em falso e poderia acontecer alguma tragédia. Ocorreu então um espaço de tempo em que os interlocutores se estudavam, quando o fulano dirigindo-se uma vez mais ao forasteiro disse: Bom homem, por acaso o senhor se lembra de há alguns anos atrás, perto da cidade de Viseu, três militares entrarem numa taberna onde o senhor estava? Sim lembro! Dois desses militares comeram pão com sardinha e um outro ficou a ver como eles comiam, lembra-se? E continuou: O senhor então perguntou aquele que nada comia se não tinha também fome? Este respondeu que fome tinha mas dinheiro para comer é que não! E prosseguiu: O senhor deu então ordem ao taberneiro para me servir uma dose igual à dos meus colegas e pagou, sem me conhecer de lado nenhum, por isso meu caro amigo, não há dinheiro no mundo que pague o que fez por mim e não é o senhor que está em divida comigo mas sim eu com o senhor! Não fiquei a saber de onde o senhor era, tinha apenas uma vaga ideia de ter ouvido o nome de Vila Nova de Paiva, onde ainda o procurei, mas em vão. Porém o destino encarrega-se de nos pregar de vez enquando algumas surpresas e esta foi das melhores que me podia ter acontecido e já lá vão muitos anos. Porém, agora sinto-me no dever de retribuir o que o senhor fez por mim.
            
Como o temporal teimava em não dar tréguas os dois viajantes, agora mais calmos, rumaram à casa do fulano e pernoitaram ali, não só para alívio deles mas também do jumento que, desta forma, fez o trajeto em duas etapas e também porque ali bem perto estava a volta do Rossas e lá bem no alto da cascalheira os lobos já começavam uivar.


Em homenagem ao meu avô, José Camponês “tamanqueiro”