Fazer bem e não olhar a quem
As viagens a
Lamego eram frequentes, quer pelas festividades dos remédios quer pela venda de
carvão ou ainda pela ida para as vindimas ou mesmo para apanhar o comboio para
o Porto, o certo é que era mais acessível esta cidade do que a sede do
distrito. Ali acorria toda a espécie de negociantes desde os carvoeiros, aos
retalhistas de fazendas, vinhateiros, tamanqueiros…
Era uma
cidade onde não faltavam aventureiros das mais variadas camadas da sociedade,
muitos deles provocadores, sempre com a intenção de mostrarem a sua valentia,
quer com o pau de junco, com a faca ou mesmo com arma de fogo. Os conflitos
eram de tal ordem que as autoridades, mal armadas e mal formadas, temiam sempre
que eram chamadas a ocorrer a algum desacato. Raras eram as vezes em que a
desordem não descambava para o pior, chegando em alguns dos casos a desarmarem
os pobres coitados e pô-los a fugir a sete pés.
Às portas de
Lamego, ali pela localidade do Rossas, os assaltos sucediam-se com muita frequência,
cujo modelo de assalto versava sempre em o assaltante pedir lume ao viajante ou
então um cigarro, de forma que este, quando levava a mão ao bolso, o meliante
anunciava o assalto. Há relatos até que, certo dia, um fulano passava por ali
descontraído e é abordado por um ladrão, que lhe pede lume para acender o
cigarro, porém, quando este meteu a mão ao bolso, em vez de lume sacou de um
revolver e apontou-lho à cabeça dizendo-lhe: Este serve ou queres mais? O até
então valente assaltante transformou-se num “rato” e deu às de vila Diogo, não
esperando para ver qual era a qualidade do lume que lhe iria acender o cigarro.
Muitas mais histórias se contam que a serem verdadeiras eram de arrepiar. Ora
desta forma o viajar sozinho e as más horas não era de todo recomendado, se bem
que os alvos mais apetecidos eram aqueles que por norma transacionavam mais
dinheiro como negociantes de gado ou de fazendas. A acrescentar a esta
bandidagem vinha o problema dos lobos, nomeadamente para aqueles que tinham de
atravessar a serra, pois estes animais quantos mais eram, menor” ausio” faziam
como então se dizia.
Certo dia um
pobre tamanqueiro acompanhado de um dos seus aprendizes, cruzou a Cascalheira e
a serra de Santa Helena e rumou a Lamego na esperança de adquirir o couro para
o fabrico do tamanco. Com eles levavam um pachorrento jumento, para no regresso
transportar a mercadoria. Quando voltavam, ali por Arguedeira, foram
surpreendidos por uma forte trovoada, que não tardou em descambar em chuva
torrencial. Sem outra alternativa abrigaram o animal debaixo de uma varanda e
eles correram a uma taberna que estava próxima. Longe estavam de adivinhar que
no interior da loja os esperavam alguns problemas. E que problemas!
Após tomarem
o seu copito, surge lá dum canto um fulano que se dirigiu a eles num tom
ameaçador proferindo as seguintes palavras: Ora até que enfim, é hoje que o
senhor mas vai pagar! Ai vai, lá isso vai! E com juros.
O incrédulo
ancião mirou o fulano de alto a baixo e num tom bastante calmo balbuciou: Não
creio conhecer o senhor de lado algum, quanto menos dever-lhe alguma coisa!
Porém o outro insistiu: Deve sim, mas hoje não vai sair daqui sem pagar!
Como era de
esperar este discurso não agradava ao homem, porém as circunstâncias
aconselhavam calma e ponderação, algum gesto em falso e poderia acontecer
alguma tragédia. Ocorreu então um espaço de tempo em que os interlocutores se
estudavam, quando o fulano dirigindo-se uma vez mais ao forasteiro disse: Bom
homem, por acaso o senhor se lembra de há alguns anos atrás, perto da cidade de
Viseu, três militares entrarem numa taberna onde o senhor estava? Sim lembro!
Dois desses militares comeram pão com sardinha e um outro ficou a ver como eles
comiam, lembra-se? E continuou: O senhor então perguntou aquele que nada comia
se não tinha também fome? Este respondeu que fome tinha mas dinheiro para comer
é que não! E prosseguiu: O senhor deu então ordem ao taberneiro para me servir
uma dose igual à dos meus colegas e pagou, sem me conhecer de lado nenhum, por
isso meu caro amigo, não há dinheiro no mundo que pague o que fez por mim e não
é o senhor que está em divida comigo mas sim eu com o senhor! Não fiquei a
saber de onde o senhor era, tinha apenas uma vaga ideia de ter ouvido o nome de
Vila Nova de Paiva, onde ainda o procurei, mas em vão. Porém o destino encarrega-se
de nos pregar de vez enquando algumas surpresas e esta foi das melhores que me
podia ter acontecido e já lá vão muitos anos. Porém, agora sinto-me no dever de
retribuir o que o senhor fez por mim.
Como o
temporal teimava em não dar tréguas os dois viajantes, agora mais calmos,
rumaram à casa do fulano e pernoitaram ali, não só para alívio deles mas também
do jumento que, desta forma, fez o trajeto em duas etapas e também porque ali
bem perto estava a volta do Rossas e lá bem no alto da cascalheira os lobos já
começavam uivar.
Em homenagem ao meu avô, José Camponês “tamanqueiro”
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