Os sinos dobravam a finados,
provocando nas pessoas da aldeia um arrepio que percorria toda a espinha
dorsal. Quem seria que se finou? Era a pergunta que sempre se faz, nestas
circunstâncias. Porém, desta vez, não era um qualquer comum mortal que partira
ao encontro do Pai!
A
noticia correu célere e não causou grande espanto, já que o agora defunto há
muito que se debatia com uma debilidade senil, acompanhada por deficiência
física que lhe valera a alcunha de “manquinho”.
Isso mesmo! O padre manquinho morreu!
O abade
chegara à aldeia acompanhado por uma empregada, que a princípio se pensara que
seria sua sobrinha, porém o facto de carregar consigo uma criança, cedo levou à
desconfiança de que aquilo era algo mais do que empregada.
Veio a
saber-se que o Sr. abade iniciou o seu ministério numa outra terriola e que
depressa lhe foram imputadas suspeitas de mulherengo. Ora a suspeita era nem
mais nem menos do que a empregada, que tinha um irmão sapateiro. Este ao saber
da história do padre com a irmã, terá ameaçado matá-lo. Cheio de medo, e para
se livrar de mais falatórios, o bispo terá então colocado o padre noutra
freguesia, onde paroquiou até à morte.
O seu
ministério foi longo e atribulado. Os filhos da sua empregada e dele,
naturalmente, passou da meia-dúzia e à medida que a família ia crescendo,
surgiam muitas interrogações sobre como era possível um padre, condutor de
almas, viver maritalmente com uma mulher sem que as autoridades eclesiásticas
soubessem ou, então, o permitissem.
O certo
é que dadas as circunstâncias, o “casal” pelo jeito vivia feliz e os seus
paroquianos também não se importavam muito com a situação.
Naquela
altura os meios de comunicação social não davam tanta importância a casos como
este, dando a entender que até seriam comuns e existiriam muitos mais como
este. Provavelmente, “BELL” ainda não teria descoberto a caixinha mágica que
permitia as comunicações por fio.
Certo, certo,
é que não se sabe porque tralhas malhas o bispo, mesmo lá longe, veio a ter
conhecimento da situação. Por ventura, algum “bufo” que terá rosnado aos
ouvidos do fulano e, claro, a partir daqui, já não havia volta a dar! Era
seguir com o processo e destituir o abade que, agora mais que nunca precisava,
do seu trabalho para sustentar tão enorme família.
Uma
intimação foi o suficiente para convocar o prior a se apresentar no “Paço”, a
fim de prestar declarações perante a Cúria diocesana.
O
grande dia chegou e com bastante dificuldade o prior pôs-se a caminho em
direção a Lamego onde, possivelmente, o esperava uma estranha receção. Por
ventura ele já contava com o desfecho que iria ter o encontro, mas que iria fazer, nada mais do que se resignar
perante os factos e, claro está, conformar-se com a decisão que o bispo
tomasse.
O
caminho era longo e a “besta” que montava demasiado pachorrenta. Porém, a
pressa também não era nenhuma, quanto mais longo fosse o percurso mais tempo o
padre tinha para meditar, na sua precária situação. Nesta altura, só mesmo o
“breviário”poderia dar-lhe algum conforto e paz de espírito.
Ao entrar em Lamego pelo lado oeste, o animal parou para se
dessedentar na fonte de Lázaro, antes de iniciar a descida para a ponte sobre o
“Balsemão”, onde miúdos e adolescentes, mostravam os seus dotes de mergulhadores,
pulando da ponte para o pego de água cristalina que corria a alguns metros mais
abaixo.
Os
forasteiros não resistiam ao apelo das crianças para lhe darem uma moeda, por
mais pequena que fosse, sempre com a condição de a atirarem á água e eles, de
seguida, mergulharem e agarrá-la, mesmo antes desta chegar ao fundo. Por vezes,
não eram bem sucedidos mas, na maior parte das vezes, tinham êxito e iam
amealhando uns trocados para comprar os rebuçaditos.
Ora o padre manquinho, não fora
uma exceção e enquanto o “pajem” que o acompanhava, que era por certo um dos
filhos mais velhos, tentava abrir caminho enxotando a canalhada, o bom velho
levou a mão ao bolso da devotada batina e terá também atirado o tostão para o
abismo a fim de ser apanhado pelo mais audaz dos garotos.
Passou
em frente à Sé Catedral e terá rezado, não pelos outros como era costume, mas
sim por si e só por si, já que bem iria precisar de ajuda divina.
Chegado
ao “Passo”, um enorme calafrio percorreu todo o seu corpo, mesmo antes de se
apear, já que a sua vontade era seguir em frente e só parar em lugar nenhum,
onde continuasse apenas a imaginar o que iria acontecer. Mas, além do mais, era
um homem de fé e o seu pecado, resumia-se apenas aos vícios carnais e nunca
poderiam ser encarados, como pecados mortais, esses sim que levam à condenação
eterna.
Melhor fora criar todos os
rebentos com carinho e dignidade, do que assassiná-los á nascença, ou durante a
gestação, aí sim seriam pecados imperdoáveis! Porém, ele não carregava com tal
fardo, de modo que a sua cruz não era tão pesada como muita gente fazia crer.
Não foi Cristo que impusera o celibato, foram antes os homens, por isso ele
apenas terá pecado perante estes e não contra Deus. Assim sendo, a sua
justificação seria muito mais fácil e convincente.
Por certo o bispo iria colocá-lo entre a espada
e a parede e ele só teria que resignar-se, perante os factos, ou então
argumentar, uma tese forte, permitindo-lhe sair airosamente de cena.
Desmontou
no átrio do “Passo” e, lentamente, dirigiu-se para a escadaria em pedra, que o
levava até ao sumptuoso salão, onde já estivera por outras vezes, mas em
situação diferente. O seu coração agora batia mais pausadamente, muito embora
ainda arfasse a cada degrau que com alguma dificuldade ia subindo. A porta
estava semi- aberta e, pela pequena abertura, pôde vislumbrar a silhueta do
bispo e de mais um ou dois sacerdotes, que identificou como, sendo o
Vigário-Geral e o seu coadjutor.
Entre!
Entre, padre António, já o esperávamos! Então, boa viagem?
A resposta foi clara: Menos má;
Menos má!
Com uma pequena inclinação,
bajulou o anel bispal solicitando a bênção do bispo. Terminadas as formalidades
o padre ocupou uma das cadeiras que lhe fora destinada e, agora sentado
comodamente, preparou-se para ouvir o sermão que pensava ele lhe estava
destinado, não seria bem um sermão , seria isso sim um julgamento, que por
certo o iria destituir das suas funções.
O bispo
tomou então a palavra e começou por elogiar o trabalho na paróquia, na sua
missão pastoral. No entanto, prosseguiu: O que o trouxe aqui padre António é um
caso bem diferente! Correm rumores muito pouco favoráveis a seu respeito e que,
a serem verdade, envergonham todo um clero, que pretende pautar o seu
ministério pela honestidade, numa doutrina sã e cristã, apoiada nos valores
morais e intelectuais! Ora o que me parece é que o padre violou todos estes
preceitos e vai daí passa a viver maritalmente com a sua criada e bem mais
grave com alguns filhos à mistura!? Queira-me corrigir se estou enganado padre
António! Segundo me parece são oito! Ou estarei enganado?
Fez-se
um silêncio sepulcral na sala…O padre, como que meditando profundamente na
resposta, aguardou alguns segundos e respondeu: Nove, eminência, nove! E o
facto de a minha criada viver debaixo do mesmo teto que eu, não a torna minha
meretriz, nem muito menos minha amante! É sim mãe dos seus próprios filhos e só
por isso a considero uma boa mãe e uma boa criada, muito cuidadosa e zelada,
também muito votada às causas religiosas.
Então
confessa que os filhos da sua criada também são seus?
Não confirmo nem desminto, eminência
reverendíssima!
Quer dizer então, que as crianças
nascem debaixo do seu nariz e o senhor nada sabe! Pois bem, quero dizer-lhe o
seguinte: A partir de agora o senhor deixa de ser sacerdote! Em breve, tratarei
dos documentos que serão enviados para Roma, pedido a anulação de sacerdote,
não podendo desta forma celebrar mais missa, nem desempenhar outras funções,
relacionadas com o sacerdócio! Alguma coisa a acrescentar?
Nada, eminência!
E levantou-se! Quando se dirigia para a porta, olhou de soslaio
para o bispo, percorrendo com o olhar os outros dois e disse:
Ah… Importa-se de me dizer o que
eu vou fazer, a partir deste momento, para criar aquela garotada toda? Como o Sr.
vê sou velho e aleijado, nunca soube fazer mais nada a não ser exercer o meu ministério,
na condução de almas para o paraíso e, quanto a isto, estou de consciência
tranquila! Agora, só tenho duas hipóteses:
Primeira: Coser a boca a todos lá em casa!
Segunda: Dar um cajado a cada um
e uma manta e mandá-los por essa estrada fora, assaltar os pobres dos viajantes
e olhe que eles são tantos que não tardam em chegar aqui a Lamego e, então,
eminência, terá oportunidade de os conhecer! Com licença! Tirou o colar do
pescoço e colocou-o em cima da mesa.
Já no
limiar da porta e sem mais olhar para trás, ouviu como que um grito abafado nas
suas costas.
Pare, padre António, por Deus!
Parou com um pé fora e outro
dentro e preparou-se para ouvir a estocada final, sim porque ele agonizava,
numa agonia lenta, já que sabia que a resposta que dera ao bispo era como que
uma blasfémia e não tinha perdão, pelo menos aos olhos da Santa Madre Igreja,
por certo seria excomungado e não mais obteria o perdão.
Levou
uma vida inteira a converter almas e agora em segundos perderia a sua,
lamentava-se e já estava arrependido de ter afrontado o bispo, mas que diacho,
já não podia voltar a trás! Estava dito! Estava dito!
Voltou-se
lentamente e encarou o bispo de frente, muito embora sem coragem para o fixar
nos olhos, balbuciou apenas: Sim V. eminência!
Como
sabe meu caro! Não é correto o que o Sr. fez, o exemplo que dá aos seus
paroquianos é, a todos os títulos, reprovável! Jamais a igreja consentiria numa
tão grande abomina, mas atendendo ao facto da sua idade e ainda a forma como os
seus paroquianos aceitam ter como guia espiritual um padre que violou as regras
eclesiásticas, peço-lhe pois que o senhor volte lá para a sua paróquia e
continue com o seu ministério, até que uma nova ordem lhe seja dada.
Regressou
o bom homem a casa onde o aguardava a sua “criada” e o restante clã.
Epilogo: O padre morreu velhinho e conta-se que celebrava a missa sentado numa
cadeira e que era levado ao colo para o altar por um dos seus filhos. Da
diocese nunca mais chegou a ordem que destituiria um bom homem e um bom pai não
de 8, mas de 9 filhos.
Permita-me que o felicite, Sr. Armando: mais um conto (provavelmente cheio de verdade) muito interessante. Penso que já lhe disse, o seu estilo de narrativa transmite-nos a sensação de estarmos a ouvir a história. Vale a pena esperar por mais. Muito bom!
ResponderEliminarCumprimentos,
Anabela Marques
Caro Sr. Armando,
ResponderEliminarDurante a pesquisa dos meus antepassados, deparei-me com um que penso ser filho do abade de Pendilhe. Como me parece que pretende manter o anonimato das personagens dos seus contos, queria-lhe perguntar como posso contactar consigo em privado, para saber se o "padre manquinho" é o pai do meu antepassado (e assim sendo, meu antepassado também!).
Cumprimentos,
Rui Gomes