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segunda-feira, 26 de novembro de 2012

AS VINDIMAS DO DOURO


Estávamos nos meados de 1964 e eu acabara de fazer a 4ª classe, estava portanto na altura de começar a trabalhar para ajudar, não só nas despesas da casa como também contribuir para a educação escolar das minhas irmãs. Mas com tão pouca idade o que fazer, numa terra onde havia muito trabalho mas não remunerado?
                
As vindimas no Douro, para já, eram a única escapatória que se vislumbrava, para quem pouco ou nada sabia fazer.
                
As guerras coloniais estavam a alastrar cada vez mais e os jovens eram todos mobilizados, como então se dizia, para defender o País. Ora esta situação permitia que os de mais tenra idade entrassem com mais frequência no, então, mercado de trabalho.
                
A maior parte das pessoas já eram assíduas naquelas lides, outras iniciavam-se pela primeira vez, como era o meu caso.
                
O rogador não demorou muito tempo a bater à porta dos meus pais para fazer o convite e lembro-me perfeitamente das palavras e do modo como ele abordou o tema, que foi nestes termos: Ó Alice, deixas ir o teu rapaz p’rá vindima? A minha mãe consultou-me com o olhar e respondeu: Ele ainda será muito novo! Mas eu, sem pensar em mais nada, adiantei: Ó mãe deixa-me ir. Assim, ficou assente que em Setembro eu rumaria ao Douro para as vindimas. O que levaria uma criança de onze anos a querer ir trabalhar para lugares desconhecidos e sem a tão desejada protecção dos seus progenitores? Não seria por certo o trabalho, seria antes sim para conhecer outro mundo ou seria, quem sabe, para mostrar aos mais velhos, que também era capaz de assumir responsabilidades e conseguir defender-se das adversidades do quotidiano.
                
Demorou uma eternidade a chegar o dia da partida. A minha mãe, com as suas poucas posses, lá foi arranjando o farnel para a viagem, que não constava de grande coisa mas pelo menos uma muda de roupa, dois pares de cuecas, feitas de riscado, que era o tecido mais barato na época, não que fosse uma peça de uso corrente, mas sim porque era essencialmente necessário para dar a “pousa”. Não faltava também uma enorme broa de milho, que iria ser racionada ao longo dos dias.
                
A viagem ia ser feita a pé até ao destino, com a trouxa às costas, à exceção da broa que, depois de metida numa saca de retalhos, fora entregue ao tio Moisés que a transportou até Lamego na sua burra, isto claro a troco de paga.
               
 Finalmente o dia da partida chegou e a roga, como se denominava o rancho de pessoas, começou a reunir-se no largo do Alto e, à voz do rogador, lá partimos, uns com destino conhecido, outros como eu rumo desconhecido. Por volta do meio-dia, chegámos a Lamego e a primeira coisa que o pessoal fez foi, entre todos, arranjar dinheiro para se comprar uma harmónica (realejo). Adquirido o instrumento, começaram as danças, pelos lugarejos por onde passamos, já que a chegada à Quinta estava marcada para a tardinha, o que efectivamente aconteceu.
                
Os aposentos onde iríamos pernoitar, durante a estadia, eram, no mínimo, esquisitos, já que, para nos instalarmos, fora necessário transferir o cavalo, que durante todo o ano habitava aquilo que se pode chamar de estábulo. Não foram necessárias grandes mudanças, pois em cima do esterco foram colocados alguns molhos de roço, erva que cresce no meio das videiras, e depois uns trapos que em tempos se chamaram de mantas. Isto seria o dormitório das mulheres e dos dois miúdos das cestas, quanto aos homens esses dormiam no andar de cima e as camas eram tarimbas de madeira, cujo colchão era igual ao das mulheres. Tive, porém, um pouco de sorte, já que era bastante brincalhão, as senhoras não me quiseram a dormir perto delas e assim lá fui eu também dormir para junto dos homens.
                
Não houve pressa de deitar, pelo que, ao toque do realejo, ainda se dançaram algumas modas e cantou-se o fado e o malhão. Finalmente tocou a silêncio e toda agente se acomodou, nos lugares previamente designados.
               
 Começava a despertar a aurora e o cardenho fora subitamente abanado por um estrépito agudo, que me parece que ainda hoje o ouço, mesmo só em recordar esses longínquos tempos. O silvo continuou cada vez mais audível e quase ininterrupto. Finalmente, por momentos, dera tréguas e silenciou-se. Bom, pensei, posso continuar a dormir que o perigo já passou. Como estava enganado! Outro silvo não menos agudo zuniu como um ronco junto à porta da camarata, parecendo um trovão. Vamos lá seus preguiçosos! Era a voz rude e agressiva do patrão…Levantei-me cheio de dor nas costas, vesti-me e lá fui eu começar, aquilo que seria o primeiro dia da minha vida, de trabalho remunerado.
                
A minha mãe mandara fazer uma saquinha de pano para eu levar o pão para a vinha. Já que o resto era por conta da casa. Assim na véspera fui-me à broa e, cuidadosamente, cortei um pedacito, de modo a racionar o pão para toda a campanha. Com a bolsita na mão, saí para o pátio, onde me aguardava uma infinidade de enormes cestos de vime, cada um quase da minha altura e forrados como uma lata até quase ao meio, eram os tão famosos bombos, com quem eu não me iria dar muito bem.
                
À ordem do feitor, carreguei dois ou três cestos e segui atrás das mulheres em direção à vinha. Começara, finalmente, a vindima.
                
A vista era fenomenal, pelo menos para mim, dali via-se o rio Douro em todo o seu esplendor, com pequenas barcaças, sulcando as calmas águas meias amareladas, fruto das chuvas que sempre aparecem por essas alturas. Na outra margem a cidade da Régua e bem à frente, na nossa direção, a velha estação do comboio que fumegava sempre que havia chegadas ou partidas.
                
As uvas apresentavam um aspeto tão delicioso que os olhos pareciam saltar das órbitas só em olhar para elas. A minha vontade era comer até chegar-lhe com um dedo, mas o Carrasco e monstruoso guardião, não dava um segundo de tréguas, nem pestanejava, era o dono, que lá bem perto de nós cobria toda a zona, não permitindo veleidades, nem uma depenicadela sequer.
                
Eu não sabia de que lado ia chegar o pequeno-almoço, mas já sabia qual era o manjar, só esperava que aparecesse a cozinheira e depois seria satisfeita mais uma curiosidade, que por sinal já eram muitas.
                
Lá ao longe, mais um estrondoso silvo, que anunciava a chegada de mais um comboio, vindo do Porto, com destino à Régua, apetecia-me parar para ver o famoso monstro, serpenteando as encostas, bem junto ao rio Douro, mas qual quê, não havia folga nem espaço para ter esse privilégio, o guardião não se distraia nem um segundo. Seriam cerca de nove horas, quando lá ao longe vi chegar uma mulher, com algo ao colo, que me pareceu uma cesta. A mulher aproximou-se e o feitor falou em voz alta: Ó mulheres, vamos ao almoço! Aquela chamada, também se destinava a mim, de forma que ainda lancei um temido olhar, para o sítio onde pensava estar o guardião mas ele, como por encanto, já tinha desaparecido.
                
Toda a gente se dirigiu para junto da cozinheira que, entretanto, já tinha colocado um velho prato de esmalte no chão, contendo uma quantidade de sardinhas assadas e sem cabeça, eram as tais sardinhas cochadas, que tinham sido salgadas para serem comidas cruas.
Tocava uma a cada um que, acompanhada da fatia de broa, era o pequeno-almoço. Lá comi a minha e garanto que nunca na minha vida tinha comido nada parecido, era sardinha sim, mas tão salgada, que só mesmo um cântaro de água, poderia fazer frente a tão grande salmoira.
               
Aproveitei o facto do guardião, não estar, para colmatar a falha no estômago, com algumas deliciosas uvas, essas sim bem temperadas e deliciosas.
               
Pelo meio-dia, vislumbrei ao longe a cozinheira, com um cântaro à cabeça, dirigindo-se na nossa direção. Enfiado no braço uma pequena cesta de vime, deixando antever o seu conteúdo, seria a maldita “cega”, embrulhada em folhas de videira, deixando escorrer o pouco molho que lhe davam algum gosto. Já perto, deteve-se e colocou no chão a sua tão preciosa carga, fazendo sinal ao feitor de que a “manjedoira” estava posta. À voz roufenha do fulano, toda a gente se dirigiu para o local onde estava posta a dita. O espanto foi tanto que paralisei ao ver alinhadas as tigelas de lata ferrugenta, com alguma sopa dentro. Arrepiei-me ao notar que boiando ao de cima, daquela água, alguns bocados de abóbora porqueira, que ainda eu não começara a comer e as tripas já estavam a querer sair boca fora, como que a rejeitar, aquela tão má confecionada, lavajada. Não! Não era exagero, aquilo não fora confecionado para humanos, a apresentação era de tal ordem que o mais tolerante iria, por certo, delirar com aquilo. Bom, mas será que toda a gente pensaria o mesmo que eu? Não! Claro que não…As pessoas que já tinham passado por aquilo, acharam natural aquela sopa e vai de ferrarem o dente até ao último sorvo. Mas os comentários eram muitos e não passou disso, para quê reclamar se não havia solução? A comida do rogador, ou feitor, vinha em separado e tinha outro tipo de confeção, ou seja, a ele eram servidas batatas com bacalhau e ele tinha direito a vinho, não sei se seria bom, mas pelo menos tinha aspeto disso.
                
Não demorou muito para que aquela voz esquisita se fizesse ouvir….Vamos lá mulheres? E, acto contínuo, toda agente começou a movimentar-se, retomando cada um a sua tarefa, escondendo-se nos bardos das videiras, dando a espaços algumas espreguiçadelas, como que a anunciarem um enfado momentâneo. A tarde ia caindo lentamente e o sol caminhava lentamente para o seu ocaso, não tardou porém a começar de ser noite e a tal voz esquisita, demorava uma eternidade a dar a ordem de parar o trabalho. Não iria demorar, já que lá ao longe se fazia ouvir o tal silvo agudo, anunciando a chegada de mais um comboio. Queria-me parecer que tudo era comandado pelo apito do papa-léguas, já que era muita coincidência, começarmos e largarmos o trabalho precisamente quando se ouvia o apito do comboio. Caía a noite e lá vamos nós com destino ao cardenho, onde nos esperava mais uma tarefa de todo muito invulgar, ou seja, a ceia era igual ao almoço, faltando apenas a sardinha que desta vez tinha ficado em descanso tombada na caixa, aguardando o próximo dia. Escapava, ao jantar, mas ao pequeno-almoço já não teria a mesma sorte.
              
Terminado o jantar havia ainda mais uma tarefa a cumprir, pisar o vinho!
               
Alinhei com os homens e dirigimo-nos à casa dos lagares, onde um deles estava completamente cheio, era enorme, teria uns quatro metros de largura por alguns cinco ou seis de comprimento. Pensei que me ia afogar em vinho, visto que eu era tão pequeno e aquilo era tão grande. Entrei atrás dos outros e gelei. Ufa! Aquilo era muito frio e as minhas pernas demasiado delgadas, tremiam a cada movimento. Abraçados uns aos outros, formando um cordão, a toda a largura do lagar lá íamos cadenciadamente levantando as pernas, alternadamente, qual militar marchando na parada, sem sair do mesmo sítio. Levámos assim duas longas horas abraçados e obedecendo à ordem de, Esquerdo, Direito…
              
Finalmente, cantou-se a liberdade e, cada um por si, ia pisando isoladamente, foram mais duas longas horas até chegar a voz de comando, que era nada mais nada menos que o já referido monstro. Mas voltando  à liberdade, cantava-se mais ou menos isto: Liberdade, liberdade, quem a tem chama-a sua, Eu não tenho liberdade, nem de pôr o pé na rua, e assim por aí adiante.
                
Deitei-me na tarimba, mais cansado que nunca, não me lembro ao certo quanto tempo estive a dormir, mas pareceu -me tão pouco, que não tardou em ouvir-se o vozeirão à porta do cardenho, chamando a fortes pulmões: Seus dorminhocos, vamos lá sair do ninho! Acordei e lá fui iniciar mais um dia de trabalho que seria igual a tantos outros que se seguiram até ao fim da vindima, que durou dezoito longos dias.
                
Cerca de oito dias passados, vivenciei um grande pesadelo e, sinceramente, não via como resolver tão difícil problema. Ora a broa fora tão racionada que por essa altura iria a meio e eis que, de um momento para o outro, começaram a aparecer algumas pintas de bolor não demorou um dia, que não ficasse toda contaminada. E agora o que fazer? Não havia por ali pão a vender, nem dinheiro sequer para o comprar. Então como raio havia eu de comer a sardinha? O rogador fora alertado da situação, mas encolheu os ombros, como quem não tem nada a ver com o assunto. Aquele dia passou mas ele começou a ser pressionado e, finalmente, resolveu mandar alguém à Régua comprar pão. Porém, este contra-tempo não terminava aqui, já que muitas pessoas não dispunham de dinheiro, pelo que, na melhor das hipóteses, teria que ser o rogador a fazer um adiantamento, mas também ele não possuía verba para socorrer a todos. Assim, alguns tinham mesmo que se resignar e passar sem o pão. Também aqueles que o conseguiam adquirir tinham dificuldade em fazer a sua gestão, já que corriam o risco de serem assaltados. O certo é que eu lá me desenrasquei e com mais ou menos dificuldade tive pão para toda a campanha.
              
Finalmente, o grande dia chegou e com ele o pagamento, recebi mais que as mulheres, já que as quatro horas diárias no lagar “ A FAMOSA POUSA “, eram pagas em separado daí que o meu quinhão era um pouco diferente. Feliz, pelo dinheiro e pelo fim do sacrifício, rumámos à nossa querida Terra. O realejo fazia-se ouvir pelas povoações por onde passamos, mas agora um pouco mais desafinado, pelo uso excessivo que tivera durante a campanha. Passamos Lamego e bebemos uma pinga na tasca do Sr. Pinto, um fulano muito conhecido, pelas nossas gentes, uma vez que era um indivíduo de trato fácil e muito hospitaleiro. Por ali, muitos Pendilhenses pernoitaram quando as jornadas ou estadias na cidade se resumiam a mais de um dia. Em Nespereira, compramos uma dúzia de foguetes para serem lançados quando chegássemos à Terra, que por esta altura já estava toda a gente à nossa espera. Assim, quando chegássemos, os foguetes seriam a forma de informar a povoação de que a roga do Beltrão estava de regresso.

Texto escrito em 2011  

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