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quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

A FEIRA: A verdadeira história do petiz que tudo fez para comer um belo prato de grão-de-bico


A azáfama começava de véspera, toalhas brancas de linho envolviam a cesta de vime, onde eram arrumados e ordenados os queijos que seriam vendidos na feira quinzenal de Castro Daire.

Assim, pela manhã bem cedinho e depois de aparelhado o jumento, lá rumamos nós com destino à vila.

Minha mãe carregava à cabeça um enorme cesto cheio de ovos e que em algumas das vezes ultrapassava o meio milhar, era um peso enorme só possível de suportar por alguns, pois o cuidado a ter com aquele tipo de mercadoria e o acidentado do terreno eram motivo suficiente para pôr os cabelos em pé ao mais atrevido.

Ora como se isto não bastasse, ainda era acrescida a dificuldade do poiso do cesto, já que não eram frequentes as paredes suficientemente sólidas e com altura adequada, para o descanso do transportador.

Desta forma, os locais de descanso eram previamente escolhidos e cada uma das mulheres que faziam aquele trabalho tinha o seu lugar reservado.
Assim que era colocado o cesto à cabeça da mulher esta só iria parar alguns quilómetros mais à frente, no dito local de descanso, repetindo-se estas paragens até ao lugar de recolha dos ovos.

Com a cesta dos queijos a coisa era um pouco diferente, isto para mim claro, que já tinha por essa altura uma preciosa colaboração de uma gigantesca burra que meu pai adquirira em S. Joaninho a uma senhora de nome Carma. Este animal era tão dócil que não fazia distinção no fulano que a conduzia, ou seja acatava as ordens fosse de gente graúda ou miúda.

Colocado o cabaz dos queijos em cima do albardão do animal, de pronto eu também saltava e ala que se faz tarde! Aí vai a comitiva a caminho da feira.

Porém, desta vez, não iria correr tão bem como de tantas outras em que a cena se repetia, e isto porque eu numa estúpida brincadeira fracturara o braço direito e por isso estava irremediavelmente diminuído fisicamente, necessitando de ajuda de terceiros, para fazer as operações de montar e desmontar.

Ainda assim, não faltava gentes que generosamente me valessem para executar estas manobras. Em casa tudo era resolvido com facilidade, mas no Alto de Farejinhas a situação era um pouco mais grave, tinha que esperar que alguém passasse para me ajudar a desmontar, pois o caminho dali até à povoação era tão íngreme que só mesmo a pé se conseguia descer pelo carreiro que serpenteava as enormes marinheiras, com aquelas grossas raízes à flor da pele, como quem diz à flor de terra, e pedras soltas que se tornavam um tremendo obstáculo. 

Logo ao fim da descida surgia uma rua estreita ladrilhada com calçada à portuguesa bastante desgastada pelo uso, pelo que se tornava ainda mais perigosa, já que a água que por ali passava fazia com que se tornasse bastante escorregadia.

Dali já se via a casa grande, onde segundo a lenda os Santos Mártires por ali passaram e cujas mulas que os transportavam bateram à porta e como ninguém lha terá aberto, as ditas seguiram caminho, não sem antes o formato das suas ferraduras tivessem ficado gravadas no sítio onde bateram. Não creio que tivesse sido assim, já que por mais que mirasse o local, sinceramente, nunca vi nada parecido com um rasto de ferradura gravado fosse em que local fosse.

Ora todo este trajeto era percorrido a pé até mais ou menos ao meio da calçada, onde a partir dali a descida era mais suave e assim a jornada já poderia ser feita de novo montado no animal.

Ajeitada a burrinha a um patim ali existente, era só colocar a cestinha de novo na albarda, montar e lá vamos nós.

Só que não foi bem assim, quando coloquei a cesta com os queijos em cima da burra e me preparava para montar, esta, pensando que a carga já estava completa, deu um passo em frente o suficiente para eu me desequilibrar e zás, para eu não cair, lá vai a cesta com os queijos parar ao chão.

Aterrado! Foi como eu fiquei! Sem ponta de sangue!

O caso não era para menos, alguém apareceu e socorreu-me, confortando-me com palavras carinhosas, mas eu lavado em lágrimas, não parava de pensar em qual seria a reação da minha mãe que, por esta altura, já devia estar à minha espera na vila.

A situação foi normalizando e retomei o caminho, agora um pouco mais calmo já que o prejuízo não me pareceu assim tanto, apenas dois queijos mais frescos, se haviam partido ao meio, porém eram os mais caros, cinco escudos cada.

Por certo o meu castigo não ia ser assim tão severo como a princípio o imaginei, já que iria ter a compreensão de minha mãe.

Certo, certo era o almoço que ia ser bem diferente, já que o famoso grão-de-bico de que eu tanto ansiava ia ser substituído por queijo! Bom, de mal o menos…

Como eu já pressentia, minha mãe já desesperava com o meu atraso e foi um pouco exaltada que me perguntou o motivo de tanta demora, pu-la ao corrente da situação e, como eu suspeitava, ficou logo ali decidido que grão não ia haver, já que era preciso comer os queijos partidos.

As vendedeiras, alinhadas no passeio da estreita rua, aguardavam os clientes que por ali passavam, sempre na mira de vender o seu produto primeiro que os outros.

Lá ao fundo da rua já se vislumbrava o cobrador do assento, que munido de vários livrinhos, cada um de sua cor, ia recebendo a taxa pela ocupação do espaço.

Esta era a altura de eu ficar com o negócio sozinho, enquanto minha mãe, após pagar ao cobrador, ia fazer as compras para as freguesas que a troco dos ovos e dos queijos, mandavam ir saias, aventais, couves, cebolo, tamancas, alpercatas e tantas outras coisas como remédios, venenos para ratos, etc.

Lembro que eu era demasiado pequeno para ficar à frente do negócio, mas tudo era acautelado para não ser enganado, de tal forma que a mercadoria era previamente selecionada dentro da cesta e devidamente ordenada por tamanhos e cada secção tinha o seu preço. Os mais baratos rondariam os vinte e cinco tostões e os mais caros os cinco escudos.

Não tardou e eu, como de costume, comecei em primeiro lugar a vender o meu produto, não tardando nada a restarem apenas os tais dois partidos, que por ironia do destino estava destinados a ser consumidos ao almoço.

Era imperativo que eu tentasse tudo por tudo para vender aqueles dois danados que se estavam a atravessar entre mim e o pratito de grão, por isso não hesitei em fazer uma grande lamúria, acompanhada claro está pelo apregoamento da qualidade do produto, de tal forma que havia quem parasse só para assistir aquela cena.

Quem não achava graça nenhuma era a minha mãe que da esquina dava uma espreitadela, mas com vergonha da ladainha por mim recitada, voltava a recuar, para esperar o momento em que eu me calasse, para então dar por terminada a venda.

Não demorou muito que dois fulanos, com cara de negociantes de gado, já que se encostavam a grossos paus de junco, se detivessem junto a mim e perguntaram o motivo de tal choradeira, tendo eu respondido de imediato que por acidente se tinham partido aqueles dois exemplares e se eu os não vendesse iria com certeza sofrer as consequências, com um grave corretivo.

Bom, disse um dos indivíduos, Quanto custa então cada um?

Não hesitei e respondi: Minha mãe mandou-me vendê-los por seis escudos cada mas, se o senhor me der cinco e quinhentos eu vendo!

 Voltou-se este para o outro e disse: Vá, compra lá um que eu compro o outro!

- Nem pensar, para que quero eu o queijo? Hoje vou mas é comer carne!

- Leva-o de presente à tua mulher e assim acabamos com a agonia do garoto.

Aqueles “amigos”, que inesperadamente me salvaram, não só pagaram o justo como ainda me deram dez tostões a mais que eu guardei sem a minha mãe saber.

Resta acrescentar que o grão na taberna da Maria do Arcádio estava muito saboroso.

1 comentário:

  1. Que belíssimo conto, terminei a leitura com um sorriso de satisfação. ainda bem que o petiz se safou desta! Venham mais histórias sr. Armando. Escreve muito bem e cheira-me que estes contos têm mesmo muitas verdades.
    Ficamos à espera de mais.
    Cumps. Anabela Marques

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