O velho lavrador ficara viúvo há bem pouco
tempo, desempenhara algumas funções de cariz público, fizera parte da junta de
Freguesia e, ultimamente, fora regedor. Vivia sozinho pois não tivera filhos.
Era bastante abastado, com muitas
propriedades e tinha a grande necessidade de arranjar alguém que o pudesse
ajudar na lide quotidiana.
A junta das vacas e uma corpulenta égua
constituíam-se elementos atrativos, que conquistavam a maioria dos jovens de
então.
Não lhe foi difícil escolher o alvo de que
precisava. Certo dia, abeirou-se de um humilde cidadão, pai de uma grande
família e, assim, conquistou a simpatia de um dos seus filhos, na altura com
uns escassos treze anos.
Recrutada a criança, era necessário
conquistar a sua colaboração, e nada mais prático do que dar-lhe toda a liberdade.
Começou, até, por lhe chamar, terna e carinhosamente, por “MEU MENINO “.
Pese embora estivesse viúvo há pouco tempo,
o lavrador voltara a casar-se. Também a agora nova companheira, se afeiçoara ao
jovem moço e também ela providenciara para que nada lhe faltasse, nomeadamente
trabalho!
Mas também a alimentação era ponto de
honra, ao ponto de que a sopa era comida com um garfo, isto porque era
demasiado consistente. Coisa rara, na altura…
Por esta altura, já o pobre moço dominava todos
os andamentos da casa, sobretudo a afeição que criara à égua e o afã que tinha
em limar os lameiros, nomeadamente em Algodres.
Todos os anos eram colhidos muitos
alqueires de milho e centeio, isto para não falar em feijão e castanha. Sim,
porque a castanha, depois de seca e pilada, ascendia a vários quilos e num
desses anos fora armazenada numa arca, em três sacos de linho, com cerca de
trinta a quarenta quilos cada e, para que não faltasse nenhuma, o patrão
amarrara os sacos e colocara-os de boca para baixo, não fosse o rapaz cair na
tentação de comer algumas e com isto diminuir o valor que esperava lucrar com a
sua venda.
Mas, nem mesmo assim, o jovem empregado
fora demovido de cair na tentação de surripiar algumas castanhas, sem que o
patrão desse pela sua falta. Impossibilitado de desatar os sacos, já que o peso
dos sacos era incomportável para a sua força física, foi obrigado a utilizar a
estratégia do rato.
Para tal, muniu-se de uma velha sovina, ou canelo e perfurou um dos sacos até que este começou a perder
algumas castanhas que ele, ardilosamente, ia comendo.
Esta odisseia terminou quando a agora dona
alertou o lavrador e lhe foi dizendo: Ouve lá, olha que os ratos andam na caixa
e já rebentaram um saco das castanhas!
Que diabo! Divagou o homem um pouco
intrigado, matutando a forma como os roedores teriam entrado na arca para
perpetrar o furto!
Os dias eram quase todos iguais e as
aventuras do pobre moço iam sucedendo a ritmo altíssimo, ou seja, cada dia que
passava o pobre rapaz vivia uma aventura.
Destacamos aqui algumas que nos parecem de
maior relevo, como daquela vez em que fora deitar a água a um determinado
lameiro e para tal tinha que ir à boca da mina.
Uma vez ali e na companhia de outro
rapazote, companheiro de ocasião, resolveram ir ao interior da mina e explorar
todos os seus pequenos recantos, visto que era habitual alguns pássaros ali
fazerem ninho.
Assim, alguns metros mais à frente e quando
a boca da dita mina já se tornara apenas como um pequeno circulo luminoso, lá
longe, eis que à sua frente lhe apareceu um homem muito bem vestido.
À frente seguia o companheiro, que com um
bramido aflitivo gritou: Olha ali um homem! Incrível!!! Como aparecera ali
aquela figura?! Não pensaram duas vezes e vai de recuar a grande velocidade.
Já no exterior e sem palavras, numa
correria desenfreada, cada um seguiu o seu destino. O moço, esse galopou na sua
montada, só parando bem longe, onde o suposto fantasma não chegasse.
Os dias foram passando e chegou a altura de
vender os vitelos.
Uma manhã de sábado, lá partiram os dois, o
moço e o lavrador, rumo à feira de Barrelas vender alguns animais.
Enquanto o lavrador tentava fazer o negócio
com um vitelo, o moço ficara encostado a uma árvore, a vender duas galinhotas
que a patroa lhe metera numa cesta de vime.
O negócio do vitelo fora um sucesso e o
velho lavrador além de o vender a alto preço exigia contrapartidas, sendo uma
das quais o interior do animal. Ou seja, o bandulho do animal seria seu. Para
tanto, tinha que saber qual seria o dia da morte do bicho.
Finalmente, na data marcada o patrão diz ao
moço: Olha meu menino, enquanto as vacas ficam aqui no pasto, tu chega a
Barrelas, na égua, e traz a encomenda, que te hão-de dar no matadouro.
De imediato o rapaz se pôs a caminho e em
pouco tempo já estava junto ao matadouro para trazer a encomenda, e que
encomenda!
Nem foi preciso apear-se, dois fortalhuços colocaram à sua frente uma
enorme saca de serapilheira, escorrendo matéria imunda, pelas pernas abaixo,
acompanhada de um fedor enorme! Pudera! Todo o interior de um enorme vitelo,
exalando aquele cheiro nauseabundo.
O pobre rapaz viu-se e desejou-se para
chegar a casa, já não bastava controlar a inquieta égua, senão ainda ter de
equilibrar a saca com a enorme tripalhada dentro, visto que tanto escorregava
para um lado como para o outro.
Entretanto, aproximava-se a festa de Agosto
e o rapaz pensava que o patrão lhe daria algum dinheirito para a festa, mas
qual quê, chegado o dia, o homem rebuscou no bolso das calças aparecendo apenas
quatro tostões, que na altura nada valiam.
Mas o moço tinha dinheiro e como o conseguiu?
Muito fácil e sem pecar!
Ora vejamos então e recuemos alguns meses,
até à altura da Páscoa.
O lavrador tinha muitos afilhados e nas
vésperas dissera ao moço: Meu menino toma quinze escudos e vai à padaria e traz
este dinheiro de bolos.
Na altura era tradição o padrinho dar um
bolo ao afilhado.
O rapaz pegou no dinheiro e lembrou-se que
o velho era um forreta e dificilmente lhe caberia alguma paga, quiçá algum
bolo!
Assim o melhor era precaver-se com
antecedência e não hesitou em tomar a atitude que era a mais lógica.
Desta forma, munido de uma saca, foi ao
arcaz do milho e tratou de a encher. Carregou-a até à padaria e disse ao
padeiro: Troque-me este milho por bolos de trigo.
O homem pesou o milho, fez as contas e não
só lhe deu o número de pães por ele solicitado, como ainda lhe voltou algum
dinheiro.
Foi desta forma que, quando chegou a festa
de Agosto, ele se estava borrifando para os míseros quatro tostões que o seu
amo lhe dera.
Convém aqui frisar que esta iniciativa do
jovem era perfeitamente correta. O moço não era remunerado pelo seu trabalho, não
ganhava nada, apenas trabalhava, de sol a sol, a troco da comidita. Esta
iniciativa não se pode considerar um furto, apenas e só, muita habilidade para
um jovem de pouca idade que sabia que o troco do seu árduo trabalho nada seria.
Enquanto este adolescente ia vivendo as
suas aventuras, um outro, seu irmão, mais velho dois anos, não se ficava muito
atrás, e mesmo sendo um pouco mais velho, também não deixava os seus créditos
por mãos alheias.
Traquina como se impunha e aventureiro,
nunca recuando perante fosse o que fosse, era muito mais destemido.
Segundo a sua mãe eles tocavam o extremo.
Enquanto um mais laborioso e obediente o outro mais teimoso, roçando a
delinquência.
Fora por isso que, provavelmente, os pais
os tenham separado, já que os disparates eram tantos que, mais dia, menos dia
chegaria alguma desgraça.
Seguimos então um pouco da história do
irmão mais velho que, por esta altura, tinha conseguido a amizade de um seu
primo, da mesma idade e que também não era flor que se cheirasse, como então
era corrente dizer.
A maior parte do tempo era ocupada em
guardar algumas cabeças de gado miúdo, na zona sul da povoação, onde eles eram
donos e senhores da região, visto que eram os únicos que por ali apascentavam o
gado.
Certo dia um velho negociante de gado
passava por ali com destino à sua aldeia e ao ver os rapazes, perguntou lá do
alto da sua montada: Olhai lá rapazes? Os vossos pais não terão por aí nada
para vender?
Bastou um olhar entre ambos para se
entenderem e sem preâmbulos o primo atalhou: O meu pai quer vender aquele
carneiro grande, mas quer vinte escudos por ele! Não os vale, volveu o
comprador! Então nada feito, tornou o rapaz!
O negociante voltou a mirar o carneiro e
disse ao jovem: Bom, vou dar-te os vinte escudos, porque preciso do carneiro,
mas tendes que o pôr em cima do cavalo.
É para já! E assim, enquanto o comprador
procurava os vinte escudos, na volumosa carteira, os dois jovens agarraram e
imobilizaram o animal, colocando-o de imediato em cima da montada, à frente do
homem que praguejando algo pouco perceptível lá segui caminho, enquanto os
rapazes esfregavam as mãos de contentes.
Passados alguns dias o pai perguntou pelo
carneiro ao filho, tendo este dito que, provavelmente, algum lobo o teria
apanhado e ele não dera conta, o certo é que convencido ou não o pobre lavrador
nunca mais voltou a saber do paradeiro do animal.
Porém, os vinte escudos foram bem gastos pelos
rapazolas lá para os lados de São Joaninho, numa dita tasca do Ramos.
Naquele tempo, o desequilíbrio alimentar
chegava a todos, homens e animais, pelo conseguinte não era de estranhar que
alguns destes seres, nasciam e tornavam-se raquíticos ao ponto de só muito
tarde e já em fase adulta se desenvolverem e ficarem com o tamanho normal, dou
como exemplo um parente meu, que com vinte anos ficara livre da tropa por não dar
altura, tinha apenas uns escassos metro e meio e pelos vinte e cinco anos já
teria cerca de um metro e setenta e tal.
Ora nos animais acontecia precisamente a
mesma coisa e cordeiro ou cabrito que ficasse raquítico dificilmente se
desenvolveria. Na altura, no rebanho também havia um cordeirito que, sabe-se lá
porquê, também não se desenvolveu e por isso tinha uma certa dificuldade em
acompanhar o outro gado.
De repente, as ideias demoníacas dos jovens
deram à costa e dissera um para o outro: Olha lá, este cordeiro anda a tirar-me
a paciência, que tal desfazermo-nos dele? O outro atalhou: É para já!...
E vai de agarrar o pobre animal e sem
qualquer tipo de piedade, lançaram-no no cubo do moinho.
Entre balidos de aflição, o pobrezito lá partiu
caleira da água abaixo, provocando o entupimento do chavelho e consequentemente
a imobilização da mó.
Não vale a pena relatar a ira do moleiro
quando se apercebeu do que tinha acontecido, muito menos a fúria do dono do
rebanho, quando o filho lhe disse que o cordeirinho tinha desaparecido, uma vez
mais, provavelmente, para servir de refeição a algum lobo.
Texto escrito em
2011, dedicado ao meu tio Jorge Patrício