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quarta-feira, 28 de novembro de 2012

O MOÇO e aventuras cercadas de mistérios


O velho lavrador ficara viúvo há bem pouco tempo, desempenhara algumas funções de cariz público, fizera parte da junta de Freguesia e, ultimamente, fora regedor. Vivia sozinho pois não tivera filhos.

Era bastante abastado, com muitas propriedades e tinha a grande necessidade de arranjar alguém que o pudesse ajudar na lide quotidiana.

A junta das vacas e uma corpulenta égua constituíam-se elementos atrativos, que conquistavam a maioria dos jovens de então.

Não lhe foi difícil escolher o alvo de que precisava. Certo dia, abeirou-se de um humilde cidadão, pai de uma grande família e, assim, conquistou a simpatia de um dos seus filhos, na altura com uns escassos treze anos.

Recrutada a criança, era necessário conquistar a sua colaboração, e nada mais prático do que dar-lhe toda a liberdade. Começou, até, por lhe chamar, terna e carinhosamente, por “MEU MENINO “.

Pese embora estivesse viúvo há pouco tempo, o lavrador voltara a casar-se. Também a agora nova companheira, se afeiçoara ao jovem moço e também ela providenciara para que nada lhe faltasse, nomeadamente trabalho!

Mas também a alimentação era ponto de honra, ao ponto de que a sopa era comida com um garfo, isto porque era demasiado consistente. Coisa rara, na altura…

Por esta altura, já o pobre moço dominava todos os andamentos da casa, sobretudo a afeição que criara à égua e o afã que tinha em limar os lameiros, nomeadamente em Algodres.

Todos os anos eram colhidos muitos alqueires de milho e centeio, isto para não falar em feijão e castanha. Sim, porque a castanha, depois de seca e pilada, ascendia a vários quilos e num desses anos fora armazenada numa arca, em três sacos de linho, com cerca de trinta a quarenta quilos cada e, para que não faltasse nenhuma, o patrão amarrara os sacos e colocara-os de boca para baixo, não fosse o rapaz cair na tentação de comer algumas e com isto diminuir o valor que esperava lucrar com a sua venda.

Mas, nem mesmo assim, o jovem empregado fora demovido de cair na tentação de surripiar algumas castanhas, sem que o patrão desse pela sua falta. Impossibilitado de desatar os sacos, já que o peso dos sacos era incomportável para a sua força física, foi obrigado a utilizar a estratégia do rato.

Para tal, muniu-se de uma velha sovina, ou canelo e perfurou um dos sacos até que este começou a perder algumas castanhas que ele, ardilosamente, ia comendo.

Esta odisseia terminou quando a agora dona alertou o lavrador e lhe foi dizendo: Ouve lá, olha que os ratos andam na caixa e já rebentaram um saco das castanhas!

Que diabo! Divagou o homem um pouco intrigado, matutando a forma como os roedores teriam entrado na arca para perpetrar o furto!

Os dias eram quase todos iguais e as aventuras do pobre moço iam sucedendo a ritmo altíssimo, ou seja, cada dia que passava o pobre rapaz vivia uma aventura.

Destacamos aqui algumas que nos parecem de maior relevo, como daquela vez em que fora deitar a água a um determinado lameiro e para tal tinha que ir à boca da mina.

Uma vez ali e na companhia de outro rapazote, companheiro de ocasião, resolveram ir ao interior da mina e explorar todos os seus pequenos recantos, visto que era habitual alguns pássaros ali fazerem ninho.

Assim, alguns metros mais à frente e quando a boca da dita mina já se tornara apenas como um pequeno circulo luminoso, lá longe, eis que à sua frente lhe apareceu um homem muito bem vestido.

À frente seguia o companheiro, que com um bramido aflitivo gritou: Olha ali um homem! Incrível!!! Como aparecera ali aquela figura?! Não pensaram duas vezes e vai de recuar a grande velocidade.

Já no exterior e sem palavras, numa correria desenfreada, cada um seguiu o seu destino. O moço, esse galopou na sua montada, só parando bem longe, onde o suposto fantasma não chegasse.

Os dias foram passando e chegou a altura de vender os vitelos.

Uma manhã de sábado, lá partiram os dois, o moço e o lavrador, rumo à feira de Barrelas vender alguns animais.

Enquanto o lavrador tentava fazer o negócio com um vitelo, o moço ficara encostado a uma árvore, a vender duas galinhotas que a patroa lhe metera numa cesta de vime.

O negócio do vitelo fora um sucesso e o velho lavrador além de o vender a alto preço exigia contrapartidas, sendo uma das quais o interior do animal. Ou seja, o bandulho do animal seria seu. Para tanto, tinha que saber qual seria o dia da morte do bicho.

Finalmente, na data marcada o patrão diz ao moço: Olha meu menino, enquanto as vacas ficam aqui no pasto, tu chega a Barrelas, na égua, e traz a encomenda, que te hão-de dar no matadouro.

De imediato o rapaz se pôs a caminho e em pouco tempo já estava junto ao matadouro para trazer a encomenda, e que encomenda!

Nem foi preciso apear-se, dois fortalhuços colocaram à sua frente uma enorme saca de serapilheira, escorrendo matéria imunda, pelas pernas abaixo, acompanhada de um fedor enorme! Pudera! Todo o interior de um enorme vitelo, exalando aquele cheiro nauseabundo.

O pobre rapaz viu-se e desejou-se para chegar a casa, já não bastava controlar a inquieta égua, senão ainda ter de equilibrar a saca com a enorme tripalhada dentro, visto que tanto escorregava para um lado como para o outro.

Entretanto, aproximava-se a festa de Agosto e o rapaz pensava que o patrão lhe daria algum dinheirito para a festa, mas qual quê, chegado o dia, o homem rebuscou no bolso das calças aparecendo apenas quatro tostões, que na altura nada valiam.

Mas o moço tinha dinheiro e como o conseguiu? Muito fácil e sem pecar!

Ora vejamos então e recuemos alguns meses, até à altura da Páscoa.

O lavrador tinha muitos afilhados e nas vésperas dissera ao moço: Meu menino toma quinze escudos e vai à padaria e traz este dinheiro de bolos.

Na altura era tradição o padrinho dar um bolo ao afilhado.

O rapaz pegou no dinheiro e lembrou-se que o velho era um forreta e dificilmente lhe caberia alguma paga, quiçá algum bolo!

Assim o melhor era precaver-se com antecedência e não hesitou em tomar a atitude que era a mais lógica.
Desta forma, munido de uma saca, foi ao arcaz do milho e tratou de a encher. Carregou-a até à padaria e disse ao padeiro: Troque-me este milho por bolos de trigo.

O homem pesou o milho, fez as contas e não só lhe deu o número de pães por ele solicitado, como ainda lhe voltou algum dinheiro.

Foi desta forma que, quando chegou a festa de Agosto, ele se estava borrifando para os míseros quatro tostões que o seu amo lhe dera.

Convém aqui frisar que esta iniciativa do jovem era perfeitamente correta. O moço não era remunerado pelo seu trabalho, não ganhava nada, apenas trabalhava, de sol a sol, a troco da comidita. Esta iniciativa não se pode considerar um furto, apenas e só, muita habilidade para um jovem de pouca idade que sabia que o troco do seu árduo trabalho nada seria.

Enquanto este adolescente ia vivendo as suas aventuras, um outro, seu irmão, mais velho dois anos, não se ficava muito atrás, e mesmo sendo um pouco mais velho, também não deixava os seus créditos por mãos alheias.

Traquina como se impunha e aventureiro, nunca recuando perante fosse o que fosse, era muito mais destemido.
Segundo a sua mãe eles tocavam o extremo. Enquanto um mais laborioso e obediente o outro mais teimoso, roçando a delinquência.

Fora por isso que, provavelmente, os pais os tenham separado, já que os disparates eram tantos que, mais dia, menos dia chegaria alguma desgraça.

Seguimos então um pouco da história do irmão mais velho que, por esta altura, tinha conseguido a amizade de um seu primo, da mesma idade e que também não era flor que se cheirasse, como então era corrente dizer.

A maior parte do tempo era ocupada em guardar algumas cabeças de gado miúdo, na zona sul da povoação, onde eles eram donos e senhores da região, visto que eram os únicos que por ali apascentavam o gado.

Certo dia um velho negociante de gado passava por ali com destino à sua aldeia e ao ver os rapazes, perguntou lá do alto da sua montada: Olhai lá rapazes? Os vossos pais não terão por aí nada para vender?

Bastou um olhar entre ambos para se entenderem e sem preâmbulos o primo atalhou: O meu pai quer vender aquele carneiro grande, mas quer vinte escudos por ele! Não os vale, volveu o comprador! Então nada feito, tornou o rapaz!

O negociante voltou a mirar o carneiro e disse ao jovem: Bom, vou dar-te os vinte escudos, porque preciso do carneiro, mas tendes que o pôr em cima do cavalo.

É para já! E assim, enquanto o comprador procurava os vinte escudos, na volumosa carteira, os dois jovens agarraram e imobilizaram o animal, colocando-o de imediato em cima da montada, à frente do homem que praguejando algo pouco perceptível lá segui caminho, enquanto os rapazes esfregavam as mãos de contentes.

Passados alguns dias o pai perguntou pelo carneiro ao filho, tendo este dito que, provavelmente, algum lobo o teria apanhado e ele não dera conta, o certo é que convencido ou não o pobre lavrador nunca mais voltou a saber do paradeiro do animal.

Porém, os vinte escudos foram bem gastos pelos rapazolas lá para os lados de São Joaninho, numa dita tasca do Ramos.

Naquele tempo, o desequilíbrio alimentar chegava a todos, homens e animais, pelo conseguinte não era de estranhar que alguns destes seres, nasciam e tornavam-se raquíticos ao ponto de só muito tarde e já em fase adulta se desenvolverem e ficarem com o tamanho normal, dou como exemplo um parente meu, que com vinte anos ficara livre da tropa por não dar altura, tinha apenas uns escassos metro e meio e pelos vinte e cinco anos já teria cerca de um metro e setenta e tal.

Ora nos animais acontecia precisamente a mesma coisa e cordeiro ou cabrito que ficasse raquítico dificilmente se desenvolveria. Na altura, no rebanho também havia um cordeirito que, sabe-se lá porquê, também não se desenvolveu e por isso tinha uma certa dificuldade em acompanhar o outro gado.

De repente, as ideias demoníacas dos jovens deram à costa e dissera um para o outro: Olha lá, este cordeiro anda a tirar-me a paciência, que tal desfazermo-nos dele? O outro atalhou: É para já!...

E vai de agarrar o pobre animal e sem qualquer tipo de piedade, lançaram-no no cubo do moinho.
Entre balidos de aflição, o pobrezito lá partiu caleira da água abaixo, provocando o entupimento do chavelho e consequentemente a imobilização da mó.

Não vale a pena relatar a ira do moleiro quando se apercebeu do que tinha acontecido, muito menos a fúria do dono do rebanho, quando o filho lhe disse que o cordeirinho tinha desaparecido, uma vez mais, provavelmente, para servir de refeição a algum lobo.

Texto escrito em 2011, dedicado ao meu tio Jorge Patrício

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Eu bem queria ser BARBEIRO…


Lisboa era o desenrasca das situações mais difíceis, por isso muita gente rumava à capital para trabalhar ali dois ou três meses e, desta forma, lá traziam algum dinheirito, que iria fazer face a alguma desordem orçamental de algumas famílias.

O meu pai resolvera também tentar a sua sorte e, na madrugada de um sábado, lá foi também, como tantos outros, à procura de ganhar uns vinténs que desafogassem o sufoco que uma família, de seis pessoas,  vivia naquela altura.

Com a ausência de meu pai, alguma coisa tinha de mudar no quotidiano rotineiro a que estávamos habituados. Ora como o meu pai era barbeiro, naquele sábado, alguém tinha que desempenhar o seu papel, pois não tardariam a chegar os primeiros fregueses, para a habitual escanhoadela.

O escolhido fora o Joaquim Corato, que era muito amigo do meu pai e ainda porque dava um jeitito com a barbeadora. 

A meio dessa manhã, o amigo Corato tivera uma folgazita e preparava-se para cortar também a sua barba. Ao aperceber-me desta manobra dirijo-me ao pobre coitado e sem mais nem menos, atiro com a frase: Ó tio Joaquim quer que eu lhe corte a barba? O homem olhou de soslaio e perguntou: E tu sabes cortá-la? Claro, respondi de imediato e acrescentei, sou eu que algumas vezes corto a de meu pai! Bom, continuou ele, se assim é, vamos lá e sentou-se no cadeirão, esperando que o agora armado em “barbeiro” lhe colocasse o pano à volta do pescoço. 

Não tardou e a cara do “freguês” estava preparada para o sacrifício, cheia de sabonária. No primeiro lance, o homem lançou um pequeno estremeção que me deixou um pouco nervoso, mas continuei. 

A meio da tarefa, ele levantou a mão e disse: Ouve lá, passa a navalha pelo assentador porque está um bocado brava. Sinceramente, não sei fazer isso lá muito bem, porque a minha mão é pequena e não seguro muito bem a navalha, atalhei eu de rompante. 

Pacientemente, o bom homem pegou nos instrumentos e com muita calma fez o assentamento da “naifa”, deixando esta ainda mais bem preparada para continuar com o flagelo infligido na cara do desgraçado. Por fim, dei por terminado o massacre e arrepiei-me só em pensar o que ele me diria quando se visse ao espelho.

Antes de terminar, entrou o meu alfaiate que, a troco de me fazer anualmente umas calças, gozava ele e os filhos, ao longo do ano, dos serviços do barbeiro.

Quando o alfaiate entrou e viu a cara ensanguentada do Corato, perguntou de imediato pelo meu pai, ao que respondi que naquele dia não ia estar.

O homem deve ter pensado lá para ele: que diabo então foi-se embora e ficou o rapaz a tomar conta disto?

Devo ter ficado atrapalhado com o olhar fulminante que o homem me lançou, mas também não deve ter provocado grande efeito, já que, o agora escanhoado Joaquim, acudiu em meu socorro e disse. Ó tio João olhe que, o rapaz, já não arranja nada mal, tem até muito jeito para isto, tem a mão muito leve, sabe muito bem dar-lhe volta. Muito bem, até pode ser, mas corta-me lá tu a barba, para ser mais depressa!

Que bela desculpa pensei; é claro que ele quando viu a cara do outro, jamais deixaria que eu lhe pusesse as mãos na cara dele.

Bem se vê que a minha promissora carreira de Barbeiro por aqui ficou…  

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

AS MINHAS CALÇAS NOVAS E O DESEJO DE NÃO SER PATRÃO


O dia de festa aproximava-se e eu já tinha ordem para ir ao alfaiate fazer a prova das calças de cotim que a minha mãe tinha mandado fazer. O tecido, comprado no Sr. Antoninho, dava para mim e para o meu pai, que entretanto fizera questão de que as minhas teriam alças, uma espécie de suspensórios, visto que eu era ainda muito novo e não tinha cinta para as segurar com cinto. Bom, o certo é que não havia cinto nenhum.

Por sorte, o meu pai acedera à minha insistência para que as ditas, em vez de alças, fossem dotadas de presilhas e assim fui a correr ao alfaiate e disse-lhe que queria as calças com presilhas para usar cinto. A tempo ou não, o pobre homem lá fez a ratificação e ainda as dotou de um pequeno bolso sob a zona frontal do lado direito, destinado ao dinheiro. O alfaiate estreou o bolsinho e deu-me dois tostões, vinte centavos.

O cinto, esse viria da feira do Crasto que se realizava por esses dias, assim como a camisa de terilene, que assentava que nem uma luva.

Na manhã do dia quinze, ouviu-se a banda da música a tocar e esse foi sem duvida o toque que faltava para me aperaltar e ir ver mais de perto os inícios das festas.

A minha madrinha, ao ver-me tão catita, disse a um seu irmão há muitos anos radicado em Lisboa: O Armando faz anos amanhã, mas hoje é que precisa da prenda, para gastar na festa. O rapaz, na altura um trintão, puxou de um pequeno porta-moedas e do seu interior tirou uma moedinha que era nada mais nada menos que vinte e cinco tostões, 2.50 em prata, ainda que pequena, era bastante valiosa, ainda mais nas mãos de um garoto da minha idade.

Nesse dia o almoço era melhorado e estou bem certo que o menu era coelho com arroz, se bem que o coelho em minha casa não era novidade já que o meu pai era caçador e coelho era o que não faltava. Lembro-me muito bem que não via a hora de ir para o arraial, exibir as minhas moedinhas, que iam, certamente, encher de inveja os meus colegas, que não teriam por certo a mesma sorte que eu. Meia dúzia de músicos passaram à minha porta, com os instrumentos às costas, cujo destino era a casa do mordomo, onde fora feito o ramo de ofertas destinadas ao leilão. Este ano havia uma grande inovação, ao contrário de serem os rapazes a transportar o ramo, este ia em cima de um carro de vacas, previamente enfeitado e puxado por uma bonita junta, propriedade do Manuel Cerejinha com alcunha de “BARRACAS”. No interior do ramo, foi feito um compartimento que albergava um belo vitelo, adquirido pela população do Eido-Além. Esta ousadia de jungir, que aqui se diz junguer, as vacas no dia santo trouxera vários dissabores aos autores, já que o padre não gostou da cena e quase, quase os excomungava, não fosse a intervenção de algumas pessoas bem posicionadas junto do clérigo e as coisas tornar-se-iam muito complicadas. No entanto, tudo acabou em bem.

A marcha lá seguiu e eu sempre com cuidados redobrados, ia a espaços apalpando as minhas moedinhas, não fossem elas por magia saltar do bolso e estatelarem-se na sinuosa calçada onde, por certo, não demorariam a mudar de mão. À medida que nos aproximamos do lugar dos festejos, o palpitar do meu coração era cada vez mais forte e eu já ia pensando em como gastaria aquela pequena fortuna. Dava pelo menos para dois pirolitos e meia dúzia de rebuçados, ou comprava um brinquedo ou outra coisa qualquer, quando chegasse o momento logo veria como seria a melhor aplicação. No largo da Praça, junto ao Pelourinho, o rancho parara e os convivas gritavam e bebiam vinho de um garrafão, por aquela altura a sede já não era nenhuma, mas mesmo assim as goelas eram constantemente fustigadas por fortes tragos do famoso líquido cantante!

Chegara o momento decisivo e que eu já mais esquecerei, um primo meu, afilhado de meu pai, acercou-se de nós e com um gesto, premeditado, quiçá ensaiado, ergueu as mãos e pediu a bênção ao padrinho, que respondeu instintivamente emocionado com o tradicional “DEUS TE ABENCOE”, ao mesmo tempo que com um gesto preciso tirou do bolso das calças um velho porta-moedas, que abriu, mas apenas exibiu algumas notas de vinte e fez saber que mais tarde daria alguma coisa ao rapaz, assim que houvesse dinheiro trocado.

Irrefletidamente, eu dirijo-me ao meu pai e num gesto glorioso disse: Pai, tenho aqui vinte e cinco tostões, se quiser eu empresto-lhos, tendo ele respondido de pronto: Dá-os ao Ilídio, que eu daqui a nada já tos dou. O meu primo pegou na moeda e ó pernas para que te quero, vai dali aos brinquedos, comprou uma bonita camioneta, que de pronto me veio mostrar. Fiquei petrificado e vou direito ao meu pai pedir-lhe o dinheiro, pois já sabia onde o iria gastar. Pois sim, o meu pedido caiu em saco roto, não obtendo sequer resposta. Ainda insisti mas sem resultado. Percebi então que à medida que o tempo passava as hipóteses de reaver a minha moeda eram cada vez mais remotas, isto porque a bebida passava a comandar as mentes e não tardaria nada o cérebro ia ser comandado pela bebida e aí sim, era o fim da minha ilusão. Não me enganei no meu raciocínio, os factos estavam dados como provados e aquela questão era assunto perdido, jamais iria reaver o meu pecúlio, que tão prematuramente mudara de mão e o que tornava ainda mais doloroso o meu penar, era o outro garoto exibir triunfantemente o brinquedo que podia ser meu. 

A festa para mim já não tinha sentido, fora enganado, por apenas ter um gesto de boa vontade e agora restava-me apenas vinte centavos, que não davam para nada. O dia terminava e eu, angustiado, aguardava o dia seguinte que era o meu aniversário, mas que valor tinha isso, se não havia prendas? Apenas me restava conformar-me com a situação, o que não era de todo fácil, já que o meu tio João também comprara uma camioneta igual à do outro e para cúmulo, fazia questão de não me deixar brincar com ela. Assim, quando eu lhe pedia para me deixar conduzir o veiculozinho, ele argumentava muito simplesmente: Tu fazes de patrão e eu de empregado, logo quem trabalha sou eu tu apenas mandas. Eu voltava à carga e lá ia dizendo, muito meigamente: Ó tio deixe-me lá ser agora o empregado e você o patrão! Mas qual quê! Nem assim o demovia! Ele é que era o empregado e assunto encerrado.
                                   
  Epílogo
Não me recordo do ano em que isto aconteceu, mas eu não teria mais de nove ou dez anos. Quero ainda com este meu conto, preservar a memória dos intervenientes, que já todos partiram e de uma forma bastante prematura. Não guardo rancor de nenhum deles, apenas boas recordações, isto foi apenas um episódio na minha história de vida que, agora, muito faz rir os meus filhos!

Escrito aos 04 dias de Setembro de 2012

AS VINDIMAS DO DOURO


Estávamos nos meados de 1964 e eu acabara de fazer a 4ª classe, estava portanto na altura de começar a trabalhar para ajudar, não só nas despesas da casa como também contribuir para a educação escolar das minhas irmãs. Mas com tão pouca idade o que fazer, numa terra onde havia muito trabalho mas não remunerado?
                
As vindimas no Douro, para já, eram a única escapatória que se vislumbrava, para quem pouco ou nada sabia fazer.
                
As guerras coloniais estavam a alastrar cada vez mais e os jovens eram todos mobilizados, como então se dizia, para defender o País. Ora esta situação permitia que os de mais tenra idade entrassem com mais frequência no, então, mercado de trabalho.
                
A maior parte das pessoas já eram assíduas naquelas lides, outras iniciavam-se pela primeira vez, como era o meu caso.
                
O rogador não demorou muito tempo a bater à porta dos meus pais para fazer o convite e lembro-me perfeitamente das palavras e do modo como ele abordou o tema, que foi nestes termos: Ó Alice, deixas ir o teu rapaz p’rá vindima? A minha mãe consultou-me com o olhar e respondeu: Ele ainda será muito novo! Mas eu, sem pensar em mais nada, adiantei: Ó mãe deixa-me ir. Assim, ficou assente que em Setembro eu rumaria ao Douro para as vindimas. O que levaria uma criança de onze anos a querer ir trabalhar para lugares desconhecidos e sem a tão desejada protecção dos seus progenitores? Não seria por certo o trabalho, seria antes sim para conhecer outro mundo ou seria, quem sabe, para mostrar aos mais velhos, que também era capaz de assumir responsabilidades e conseguir defender-se das adversidades do quotidiano.
                
Demorou uma eternidade a chegar o dia da partida. A minha mãe, com as suas poucas posses, lá foi arranjando o farnel para a viagem, que não constava de grande coisa mas pelo menos uma muda de roupa, dois pares de cuecas, feitas de riscado, que era o tecido mais barato na época, não que fosse uma peça de uso corrente, mas sim porque era essencialmente necessário para dar a “pousa”. Não faltava também uma enorme broa de milho, que iria ser racionada ao longo dos dias.
                
A viagem ia ser feita a pé até ao destino, com a trouxa às costas, à exceção da broa que, depois de metida numa saca de retalhos, fora entregue ao tio Moisés que a transportou até Lamego na sua burra, isto claro a troco de paga.
               
 Finalmente o dia da partida chegou e a roga, como se denominava o rancho de pessoas, começou a reunir-se no largo do Alto e, à voz do rogador, lá partimos, uns com destino conhecido, outros como eu rumo desconhecido. Por volta do meio-dia, chegámos a Lamego e a primeira coisa que o pessoal fez foi, entre todos, arranjar dinheiro para se comprar uma harmónica (realejo). Adquirido o instrumento, começaram as danças, pelos lugarejos por onde passamos, já que a chegada à Quinta estava marcada para a tardinha, o que efectivamente aconteceu.
                
Os aposentos onde iríamos pernoitar, durante a estadia, eram, no mínimo, esquisitos, já que, para nos instalarmos, fora necessário transferir o cavalo, que durante todo o ano habitava aquilo que se pode chamar de estábulo. Não foram necessárias grandes mudanças, pois em cima do esterco foram colocados alguns molhos de roço, erva que cresce no meio das videiras, e depois uns trapos que em tempos se chamaram de mantas. Isto seria o dormitório das mulheres e dos dois miúdos das cestas, quanto aos homens esses dormiam no andar de cima e as camas eram tarimbas de madeira, cujo colchão era igual ao das mulheres. Tive, porém, um pouco de sorte, já que era bastante brincalhão, as senhoras não me quiseram a dormir perto delas e assim lá fui eu também dormir para junto dos homens.
                
Não houve pressa de deitar, pelo que, ao toque do realejo, ainda se dançaram algumas modas e cantou-se o fado e o malhão. Finalmente tocou a silêncio e toda agente se acomodou, nos lugares previamente designados.
               
 Começava a despertar a aurora e o cardenho fora subitamente abanado por um estrépito agudo, que me parece que ainda hoje o ouço, mesmo só em recordar esses longínquos tempos. O silvo continuou cada vez mais audível e quase ininterrupto. Finalmente, por momentos, dera tréguas e silenciou-se. Bom, pensei, posso continuar a dormir que o perigo já passou. Como estava enganado! Outro silvo não menos agudo zuniu como um ronco junto à porta da camarata, parecendo um trovão. Vamos lá seus preguiçosos! Era a voz rude e agressiva do patrão…Levantei-me cheio de dor nas costas, vesti-me e lá fui eu começar, aquilo que seria o primeiro dia da minha vida, de trabalho remunerado.
                
A minha mãe mandara fazer uma saquinha de pano para eu levar o pão para a vinha. Já que o resto era por conta da casa. Assim na véspera fui-me à broa e, cuidadosamente, cortei um pedacito, de modo a racionar o pão para toda a campanha. Com a bolsita na mão, saí para o pátio, onde me aguardava uma infinidade de enormes cestos de vime, cada um quase da minha altura e forrados como uma lata até quase ao meio, eram os tão famosos bombos, com quem eu não me iria dar muito bem.
                
À ordem do feitor, carreguei dois ou três cestos e segui atrás das mulheres em direção à vinha. Começara, finalmente, a vindima.
                
A vista era fenomenal, pelo menos para mim, dali via-se o rio Douro em todo o seu esplendor, com pequenas barcaças, sulcando as calmas águas meias amareladas, fruto das chuvas que sempre aparecem por essas alturas. Na outra margem a cidade da Régua e bem à frente, na nossa direção, a velha estação do comboio que fumegava sempre que havia chegadas ou partidas.
                
As uvas apresentavam um aspeto tão delicioso que os olhos pareciam saltar das órbitas só em olhar para elas. A minha vontade era comer até chegar-lhe com um dedo, mas o Carrasco e monstruoso guardião, não dava um segundo de tréguas, nem pestanejava, era o dono, que lá bem perto de nós cobria toda a zona, não permitindo veleidades, nem uma depenicadela sequer.
                
Eu não sabia de que lado ia chegar o pequeno-almoço, mas já sabia qual era o manjar, só esperava que aparecesse a cozinheira e depois seria satisfeita mais uma curiosidade, que por sinal já eram muitas.
                
Lá ao longe, mais um estrondoso silvo, que anunciava a chegada de mais um comboio, vindo do Porto, com destino à Régua, apetecia-me parar para ver o famoso monstro, serpenteando as encostas, bem junto ao rio Douro, mas qual quê, não havia folga nem espaço para ter esse privilégio, o guardião não se distraia nem um segundo. Seriam cerca de nove horas, quando lá ao longe vi chegar uma mulher, com algo ao colo, que me pareceu uma cesta. A mulher aproximou-se e o feitor falou em voz alta: Ó mulheres, vamos ao almoço! Aquela chamada, também se destinava a mim, de forma que ainda lancei um temido olhar, para o sítio onde pensava estar o guardião mas ele, como por encanto, já tinha desaparecido.
                
Toda a gente se dirigiu para junto da cozinheira que, entretanto, já tinha colocado um velho prato de esmalte no chão, contendo uma quantidade de sardinhas assadas e sem cabeça, eram as tais sardinhas cochadas, que tinham sido salgadas para serem comidas cruas.
Tocava uma a cada um que, acompanhada da fatia de broa, era o pequeno-almoço. Lá comi a minha e garanto que nunca na minha vida tinha comido nada parecido, era sardinha sim, mas tão salgada, que só mesmo um cântaro de água, poderia fazer frente a tão grande salmoira.
               
Aproveitei o facto do guardião, não estar, para colmatar a falha no estômago, com algumas deliciosas uvas, essas sim bem temperadas e deliciosas.
               
Pelo meio-dia, vislumbrei ao longe a cozinheira, com um cântaro à cabeça, dirigindo-se na nossa direção. Enfiado no braço uma pequena cesta de vime, deixando antever o seu conteúdo, seria a maldita “cega”, embrulhada em folhas de videira, deixando escorrer o pouco molho que lhe davam algum gosto. Já perto, deteve-se e colocou no chão a sua tão preciosa carga, fazendo sinal ao feitor de que a “manjedoira” estava posta. À voz roufenha do fulano, toda a gente se dirigiu para o local onde estava posta a dita. O espanto foi tanto que paralisei ao ver alinhadas as tigelas de lata ferrugenta, com alguma sopa dentro. Arrepiei-me ao notar que boiando ao de cima, daquela água, alguns bocados de abóbora porqueira, que ainda eu não começara a comer e as tripas já estavam a querer sair boca fora, como que a rejeitar, aquela tão má confecionada, lavajada. Não! Não era exagero, aquilo não fora confecionado para humanos, a apresentação era de tal ordem que o mais tolerante iria, por certo, delirar com aquilo. Bom, mas será que toda a gente pensaria o mesmo que eu? Não! Claro que não…As pessoas que já tinham passado por aquilo, acharam natural aquela sopa e vai de ferrarem o dente até ao último sorvo. Mas os comentários eram muitos e não passou disso, para quê reclamar se não havia solução? A comida do rogador, ou feitor, vinha em separado e tinha outro tipo de confeção, ou seja, a ele eram servidas batatas com bacalhau e ele tinha direito a vinho, não sei se seria bom, mas pelo menos tinha aspeto disso.
                
Não demorou muito para que aquela voz esquisita se fizesse ouvir….Vamos lá mulheres? E, acto contínuo, toda agente começou a movimentar-se, retomando cada um a sua tarefa, escondendo-se nos bardos das videiras, dando a espaços algumas espreguiçadelas, como que a anunciarem um enfado momentâneo. A tarde ia caindo lentamente e o sol caminhava lentamente para o seu ocaso, não tardou porém a começar de ser noite e a tal voz esquisita, demorava uma eternidade a dar a ordem de parar o trabalho. Não iria demorar, já que lá ao longe se fazia ouvir o tal silvo agudo, anunciando a chegada de mais um comboio. Queria-me parecer que tudo era comandado pelo apito do papa-léguas, já que era muita coincidência, começarmos e largarmos o trabalho precisamente quando se ouvia o apito do comboio. Caía a noite e lá vamos nós com destino ao cardenho, onde nos esperava mais uma tarefa de todo muito invulgar, ou seja, a ceia era igual ao almoço, faltando apenas a sardinha que desta vez tinha ficado em descanso tombada na caixa, aguardando o próximo dia. Escapava, ao jantar, mas ao pequeno-almoço já não teria a mesma sorte.
              
Terminado o jantar havia ainda mais uma tarefa a cumprir, pisar o vinho!
               
Alinhei com os homens e dirigimo-nos à casa dos lagares, onde um deles estava completamente cheio, era enorme, teria uns quatro metros de largura por alguns cinco ou seis de comprimento. Pensei que me ia afogar em vinho, visto que eu era tão pequeno e aquilo era tão grande. Entrei atrás dos outros e gelei. Ufa! Aquilo era muito frio e as minhas pernas demasiado delgadas, tremiam a cada movimento. Abraçados uns aos outros, formando um cordão, a toda a largura do lagar lá íamos cadenciadamente levantando as pernas, alternadamente, qual militar marchando na parada, sem sair do mesmo sítio. Levámos assim duas longas horas abraçados e obedecendo à ordem de, Esquerdo, Direito…
              
Finalmente, cantou-se a liberdade e, cada um por si, ia pisando isoladamente, foram mais duas longas horas até chegar a voz de comando, que era nada mais nada menos que o já referido monstro. Mas voltando  à liberdade, cantava-se mais ou menos isto: Liberdade, liberdade, quem a tem chama-a sua, Eu não tenho liberdade, nem de pôr o pé na rua, e assim por aí adiante.
                
Deitei-me na tarimba, mais cansado que nunca, não me lembro ao certo quanto tempo estive a dormir, mas pareceu -me tão pouco, que não tardou em ouvir-se o vozeirão à porta do cardenho, chamando a fortes pulmões: Seus dorminhocos, vamos lá sair do ninho! Acordei e lá fui iniciar mais um dia de trabalho que seria igual a tantos outros que se seguiram até ao fim da vindima, que durou dezoito longos dias.
                
Cerca de oito dias passados, vivenciei um grande pesadelo e, sinceramente, não via como resolver tão difícil problema. Ora a broa fora tão racionada que por essa altura iria a meio e eis que, de um momento para o outro, começaram a aparecer algumas pintas de bolor não demorou um dia, que não ficasse toda contaminada. E agora o que fazer? Não havia por ali pão a vender, nem dinheiro sequer para o comprar. Então como raio havia eu de comer a sardinha? O rogador fora alertado da situação, mas encolheu os ombros, como quem não tem nada a ver com o assunto. Aquele dia passou mas ele começou a ser pressionado e, finalmente, resolveu mandar alguém à Régua comprar pão. Porém, este contra-tempo não terminava aqui, já que muitas pessoas não dispunham de dinheiro, pelo que, na melhor das hipóteses, teria que ser o rogador a fazer um adiantamento, mas também ele não possuía verba para socorrer a todos. Assim, alguns tinham mesmo que se resignar e passar sem o pão. Também aqueles que o conseguiam adquirir tinham dificuldade em fazer a sua gestão, já que corriam o risco de serem assaltados. O certo é que eu lá me desenrasquei e com mais ou menos dificuldade tive pão para toda a campanha.
              
Finalmente, o grande dia chegou e com ele o pagamento, recebi mais que as mulheres, já que as quatro horas diárias no lagar “ A FAMOSA POUSA “, eram pagas em separado daí que o meu quinhão era um pouco diferente. Feliz, pelo dinheiro e pelo fim do sacrifício, rumámos à nossa querida Terra. O realejo fazia-se ouvir pelas povoações por onde passamos, mas agora um pouco mais desafinado, pelo uso excessivo que tivera durante a campanha. Passamos Lamego e bebemos uma pinga na tasca do Sr. Pinto, um fulano muito conhecido, pelas nossas gentes, uma vez que era um indivíduo de trato fácil e muito hospitaleiro. Por ali, muitos Pendilhenses pernoitaram quando as jornadas ou estadias na cidade se resumiam a mais de um dia. Em Nespereira, compramos uma dúzia de foguetes para serem lançados quando chegássemos à Terra, que por esta altura já estava toda a gente à nossa espera. Assim, quando chegássemos, os foguetes seriam a forma de informar a povoação de que a roga do Beltrão estava de regresso.

Texto escrito em 2011  

A MALHADA


O sino da igreja acabava de dar as tradicionais badaladas, anunciando o chegar do dia, era o toque conhecido por ave-marias, era o sinal para as pessoas abandonarem a cama e levantar para mais um dia de trabalho.


Este porém era um dia diferente, os manguais já tinham ficado de molho desde a véspera, pois esperavam-nos um dia diferente. A luta do quotidiano variava consoante a época e agora, aos poucos, as pessoas iam chegando à eira, onde algumas “pousadas” de centeio os aguardava, para serem enfim debulhados.

O velho lavrador providenciara de antemão para que nada faltasse, tendo acautelado todos os requisitos exigidos nestas circunstâncias.

Assim as “cuanhas” varas de giesta, as vassouras rasas “giestas carrapotas”e demais utensílios, eram previamente preparados para o grande dia, “A MALHADA”.


Este era um trabalho árduo mas ao mesmo tempo era também o culminar de mais um ano de labor agrícola.


As medas de centeio aglomeravam-se nas eiras, como cogumelos, umas mais pequenas que outras, mas todas aguardavam a sua vez.


O empedrado da eira era tão irregular que eram necessários cuidados redobrados para que os malhadores não escorregassem e viessem a sofrer algum dano mais grave.


Um dos filhos do lavrador subia à meda e gritava a fortes pulmões “À eira Homens e Mulheres da Beira”. Esta expressão servia para chamar as pessoas previamente rogadas, creio que até nem seria necessário mas, pelo menos, cumpria-se uma tradição. Daí, ainda hoje, se dizer com alguma frequência “VAI LÁ RONCAR Á EIRA”.


Oito ou dez molhos de centeio eram colocados no chão de forma que os malhadores também alinhados uns em frente aos outros, pudessem manobrar o mangual, sem que se atingissem entre si.


O número de malhadores derivava, consoante a quantidade de centeio a malhar, poderia atingir os vinte, ou então os quatro, ou seis ou mais, como se disse, dependeria da quantidade de centeio. Por norma, o número de homens era sempre par e divididos equitativamente, de forma que destros e esquerdinos manobrassem o mangual, sem se tocarem.


Uma mulher, por norma bastante robusta, fazia a “chega” do molho, que um outro indivíduo ia atirando da meda abaixo.


Tomado o café, era chegada a hora de começar a malha, com os manguais a silvar o ar dando uma meia volta de forma a bater sempre com a mesma face na palha. Um dos malhadores ia dando o compasso, utilizando frases mais ou menos do género: “Vai daqui “;” olha gata”; etc.


Por volta das nove horas era servido o almoço, um pouco melhorado, já que o esforço dispendido era muito e havia que corrigir energias para aguentar o dia todo.


As refeições seguiam-se cumprindo rigorosamente os horários, ao meio-dia o jantar, às cinco a merenda e no fim a ceia.


Depois de malhado o centeio, procedia-se à limpa, assim os homens munidos das “cuanhas” iam limpando, penteando a rima de centeio, de forma a tirar a sujidade maior, enquanto as mulheres com as vassouras carrapotas varriam a eira, depois o centeio era erguido, para que o vento fizesse por fim a ultima limpeza.
Texto escrito em 2011

Cristais

Pendilhe é um local com singularidades admiráveis. Aqui se podem ver cristais de gelo que parecem emergir da terra.

São os ecos do passado que nos ajudam a consolidar a nossa identidade

Por aqui se vão contando acontecimentos e aventuras que tiveram lugar na aldeia de Pendilhe, em épocas passadas. As personagens nem sempre são identificadas, por motivos que, com o decorrer da leitura, se tornarão óbvios… Estes contos, cheios de verdades, chegaram até mim, contados, alguns na primeira pessoa de quem, realmente, os viveu, outros por quem os testemunhou.
Aqui se evocam memórias, palavras, expressões, medos e crenças de outros tempos, que apesar de difíceis nos deixam alguma nostalgia.