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domingo, 30 de agosto de 2015

Piedade, o grande amor de Marçal!

De aspeto franzino e sempre sorridente, o Marçal era uma figura típica de então. Vítima de ataque de paralisia, ainda muito criança, esta doença deixara bastantes sequelas, nomeadamente a nível de locomoção. Porém, isto era apenas um pequeno contra-tempo no seu dia-a-dia, tornando-o o alvo de alguma chacota ou brincadeira que ele, de bom grado, aceitava e até colaborava.

Em criança nunca frequentou a escola, mas isso não o impedia de ser totalmente analfabeto. Nessa ocasião, teria por ali um vizinho, já mais velho, que sabia, pelo menos, ler e escrever e este ensinara-lhe o básico para, pelo menos, fazer o seu nome, o que para aquela altura era o bastante.

Quando chegou à altura das “sortes”, fora como os jovens da sua idade à inspeção militar, ficando, como era óbvio, livre de qualquer compromisso com o estado.

A sua deficiência física não o impedia de rabiscar as moças, chegando mesmo a ganhar fama de namoradeiro, porém este seu estatuto, não lhe permitia alcançar o seu objectivo, que era casar, não só pela deficiência em si, mas também pelo facto de ser pobre, ou seja, sem eira nem beira. À partida, as moças diziam que gostavam dele mesmo assim, mas os pais não estavam pelos ajustes e escorraçavam-no como cão sarnento.

Após algumas tentativas e promessas infundadas, já que não tinha quaisquer perspetivas de futuro, o nosso herói conseguiu uma pequena abertura de uma moçoila, provavelmente despeitada ou mesmo abandonada por um pretendente mais forte, pelo mesmo motivo de ser uma eira nem beira tal como ele. Não foi preciso raciocinar muito para concluírem que o casar não era o bastante, o problema era de que iriam viver? E onde iriam morar?

Por esta altura, ele conseguira um emprego como moço de lavrador, mas era apenas um emprego, sem remuneração, apenas pela “bucha”, como se diria agora. Ora isto não lhe permitia augurar nenhum futuro, assim sendo teria que haver outra maneira de rodear a situação, o que de facto aconteceu.

Um abastado lavrador, já entradote na idade, ficara viúvo e não tardou a passar a cantada à prometida do Marçal, embora a diferença de idades fosse um pouco assustadora, a moça, que já estava prometida, não se mostrou despeitada e vai daí ficou em dar a resposta ao velhote o quanto antes.

A Piedade, assim se chamava a moça, mandara recado ao “Marçal” para se encontrarem num determinado lugar, afim de esta pôr o seu já quase noivo ao corrente da promessa que lhe fora feita. Porém, à hora marcada o infeliz não pôde comparecer. As filhas de seu patrão, ao tempo umas raparigonas, gozavam com o moço, ao ponto de não lhe permitirem sair de casa, nem para ir namorar. Prisioneiro das patroas, não conseguiu ir ao encontro com a sua amada, ou pelo menos estar à hora marcada. Revoltado com a situação, pulava e bufava, que nem animal enjaulado. De repente, começou a gritar em altos berros que ia morrer e que fora acometido de uma forte dor de barriga, que se elas não o deixassem sair ele morreria e elas seriam, assim, as culpadas da sua morte. Gritando e barafustando, cada vez dava mais sinais de que, afinal, aquilo já era mesmo a sério e as moças não tiveram outro remédio se não abrir a porta e deixá-lo sair, pois não queriam ter a tal responsabilidade na possível morte do moço. É claro que tudo isto não passou de um estratagema para sair e ir ao encontro da noiva. Porém, ela já não se encontrava no ponto combinado mas sim em casa e aqui, de noite, o Marçal não entrava. Já não bastava ser pobre e ainda mal comportada… Isso é que nem pensar! A fama era pior do que a pobreza e ela não iria cair nessa de abrir a porta assim sem mais nem menos. Mas o fulano também sabia que aquela hora era impossível penetrar nos aposentos da sua amada sem arranjar uma maneira fraudulenta para ela lhe abrir a porta. Correu, manquitando de pedra em pedra, quando chegou, bateu à porta e fez-se anunciar, sou eu… De dentro, ela respondeu: Onde estiveste até agora, volta para lá! Não são horas de se bater à porta de ninguém! Tentou justificar-se, mas ouviu outro rotundo não. Hoje, nem pensar! O pobre homem pensou alguns segundos e argumentou: Tenho um presente para te dar, mete ao menos a mão por baixo da porta (abertura por onde entrava e saia o gato) e entrego-te a prenda e vou- me embora.

A pobre caiu na esparrela desejosa de saber o que era a prenda, meteu a mão na dita abertura e o Marçal zás, filou-lhe a mão e de seguida disse-lhe: agora ou abres a porta ou não te solto a mão e ficamos aqui toda a noite. O que decides? Não teve outro remédio que não fosse abrir a porta e rezar para que ninguém visse, caso contrário a sua reputação poderia ir por água abaixo e então nem o velho rico quereria uma mulher que metia o seu namorado em casa às tantas da noite.

Ficou acertado entre ambos que o melhor seria então ela casar com o tal lavrador e mais tarde quando ele se finasse, poderiam finalmente juntar os seus trapinhos e serem felizes para sempre. A Piedade casou com o velhote, de cujo enlace nasceu uma menina que quis Deus que ela não conhecesse o motivo que levara sua mãe a casar com o pai e assim partiu o anjinho para a eternidade, ainda, de tenra idade. Enquanto isso, o bom do Marçal continuava com as suas aventuras, juntamente com os outros rapazes, mas nunca descurando a oportunidade de lançar, pelo menos, um olhar matreiro para a sua amada, cada vez que se cruzava com ela, em sinal de que ele não a esquecera.

Uma coruja noturna, por essa altura uma ave desconhecida, fazia o seu arrepiante canto nos pinhais que circundavam a aldeia, levando as pessoas a interrogar-se, que canto seria aquele e quem o produzia. As opiniões dividiam-se e enquanto uns diziam que era algum bicho tresloucado que perdera a sua amada, outros, na sua a maioria, eram mais radicais e diziam que aquilo era obra do diabo, que andava rondando as almas, tentando-as ao pecado para depois se assenhorarem delas. Fosse como fosse aquilo metia medo e respeito, só quem não se atemorizava era um tal Quim do padre que, aproveitando o temor dos habitantes, lançava as armadilhas aos coelhos, sabendo à partida que ninguém o incomodaria e, assim, poderia “trabalhar” à vontade. Porém, uma certa noite, alguns rapazes munidos de enorme coragem pensaram em fazer algumas perguntas à “besta”. Chegaram a uma centena de metros do local onde se ouvia o bicho e quando este cantou eles perguntaram: Se és da parte de Deus diz o que queres, se és da parte do diabo vai par o inferno! Ora nesse dia o tal Quim andava lá para esse lado e de pronto respondeu a todo o pulmão: Sou da parte do diabo!...Não foram precisas mais explicações, a rapaziada desatou a fugir, só parando na taberna do Arrabalde, tendo chegado em primeiro lugar o Marçal, mesmo sendo coxo. Uma vez aí, contaram o sucedido e não demorou muito a que por muito tempo se tornasse um mito, onde toda agente acreditava que se tratava de alma penada, levando as pessoas a recolher mais cedo e nunca mais ninguém se atreveu a fazer perguntas ao pobre do animal.

O Marçal tinha um vizinho, que em nada os diferenciava, exceção feita à manquidão, no entanto o aspeto físico era muito idêntico, assim como as graçolas que ambos contavam. Certo dia alguém o apelidou de “PITEFE”, na intenção clara de o chamar de patife, porém acharam tal piada ao apodo que o pobre do homem passou a ser conhecido por Pitefe, convenhamos que também não se importava muito, já que a dignidade humana naquele tempo pouco contava e como quem precisa ouve e consente, foi precisamente o que aconteceu.

Enquanto novo, foi trabalhando à jorna dando o dia pela malguita do caldo e pouco mais, já que as pagas eram sobretudo do género “trabalhas, comes, não trabalhas, olhas” e por ai adiante... Quando começou a ser rejeitado para trabalhar, aparecera-lhe a oportunidade de ser coveiro, profissão que desempenhava com denodo. Muito zeloso e cuidadoso com o que fazia, cedo o Pitefe, agora na qualidade de coveiro, granjeou a estima de toda a gente, muito laborioso, estava sempre pronto a todas as solicitações para que era chamado, nomeadamente atendendo as viúvas que eram as que mais trabalho lhe davam, arranjando as sepulturas, capinando alguma erva que despontava aqui e alem. Porém, nem tudo eram rosas porque a paga destes favores resumia-se praticamente a uma côdea de pão que alguma velhota lhe levava debaixo do avental, onde constantemente limpava o nariz, mas não era isso impeditivo de ele saborear o tão doce naco de pão. O Pitefe tinha outros atributos, que lhe eram peculiares, nomeadamente o fazer crer às pessoas que falava com os mortos e tanto que assim era que certo dia o Marçal, ao sair de casa, deparou com o Pitefe de joelhos à entrada da sua cabanita, mãos levantadas ao céu, olhos postos no horizonte e pelo movimento dos lábios e posição do corpo tudo indicava que fazia alguma prece. Abeirou-se o Marçal e perguntou: Ó Pitefe o que fazes nessa posição? O Pitefe respondeu: Peço a Deus para que morra alguém, senão não tenho trabalho e morro à fome! E isso resulta? Interroga o Marçal.

Tem resultado, Deus é meu amigo e quando me vê nesta aflição, lá chama alguém para eu ter que fazer e assim ganhar alguma coisita. Seguiu viagem o Marçal mas aquilo das preces darem resultado deixou-o meio intrigado e algum tempo depois voltou a entabular conversa com o vizinho, que sempre muito afável lá ia respondendo às piadas do outro. Só que o Marçal maquinara um plano e tinha de o pôr em prática quanto antes. Assim, ganhou coragem e disse ao Pitefe: -Ouve lá! Faz lá uma reza ao Divino, para ele levar aquele demónio que casou com a Piedade, porque a ele este mundo já não interessa e a mim fazia-me um grande favor, para finalmente casar com ela! E se resulta? Interroga o Pitefe! Há que bom, se resultasse. Garanto-te que nos daríamos muito bem no futuro, não terias mais privações, até deixarias de ser coveiro e passavas a viver lá em casa, não te faltando nada. A casa é enorme as terras são a perder de vista, uma boa junta de vacas um bom cavalo e como vês eu não me posso lá mover muito bem, serias o meu lavrador! Que me dizes? Ò Marçal e se o homem se fina? Quem acarreta com a responsabilidade? Sou eu naturalmente! Nada disso, se ele se finar a felicidade de nós três e o velho ninguém o chora. A filhita ainda é pequena e pelo aspeto também cá não vai andar muito tempo, como vês nada se perde se o desalmado deixar este mundo.


O Pitefe de repente viu-se a aplaudir a ideia do Marçal, pensou, pensou… e concluiu que mais um pedido ao criador, não o iria incomodar e vai daí, todos os dias fazia a mesma reza, embora agora com mais afinco, com a perspetiva de mudar de vida. Sabendo de antemão que nada valeria, o Pitefe não desistia e eis que um certo dia as suas súplicas deram fruto e o pobre do velhote finou-se, não pelo facto das rezas, mas sim pela senilidade, deixando o caminho livre ao Marçal.

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