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sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Fazer bem e não olhar a quem


As viagens a Lamego eram frequentes, quer pelas festividades dos remédios quer pela venda de carvão ou ainda pela ida para as vindimas ou mesmo para apanhar o comboio para o Porto, o certo é que era mais acessível esta cidade do que a sede do distrito. Ali acorria toda a espécie de negociantes desde os carvoeiros, aos retalhistas de fazendas, vinhateiros, tamanqueiros…
           
Era uma cidade onde não faltavam aventureiros das mais variadas camadas da sociedade, muitos deles provocadores, sempre com a intenção de mostrarem a sua valentia, quer com o pau de junco, com a faca ou mesmo com arma de fogo. Os conflitos eram de tal ordem que as autoridades, mal armadas e mal formadas, temiam sempre que eram chamadas a ocorrer a algum desacato. Raras eram as vezes em que a desordem não descambava para o pior, chegando em alguns dos casos a desarmarem os pobres coitados e pô-los a fugir a sete pés.
            
Às portas de Lamego, ali pela localidade do Rossas, os assaltos sucediam-se com muita frequência, cujo modelo de assalto versava sempre em o assaltante pedir lume ao viajante ou então um cigarro, de forma que este, quando levava a mão ao bolso, o meliante anunciava o assalto. Há relatos até que, certo dia, um fulano passava por ali descontraído e é abordado por um ladrão, que lhe pede lume para acender o cigarro, porém, quando este meteu a mão ao bolso, em vez de lume sacou de um revolver e apontou-lho à cabeça dizendo-lhe: Este serve ou queres mais? O até então valente assaltante transformou-se num “rato” e deu às de vila Diogo, não esperando para ver qual era a qualidade do lume que lhe iria acender o cigarro. Muitas mais histórias se contam que a serem verdadeiras eram de arrepiar. Ora desta forma o viajar sozinho e as más horas não era de todo recomendado, se bem que os alvos mais apetecidos eram aqueles que por norma transacionavam mais dinheiro como negociantes de gado ou de fazendas. A acrescentar a esta bandidagem vinha o problema dos lobos, nomeadamente para aqueles que tinham de atravessar a serra, pois estes animais quantos mais eram, menor” ausio” faziam como então se dizia.
            
Certo dia um pobre tamanqueiro acompanhado de um dos seus aprendizes, cruzou a Cascalheira e a serra de Santa Helena e rumou a Lamego na esperança de adquirir o couro para o fabrico do tamanco. Com eles levavam um pachorrento jumento, para no regresso transportar a mercadoria. Quando voltavam, ali por Arguedeira, foram surpreendidos por uma forte trovoada, que não tardou em descambar em chuva torrencial. Sem outra alternativa abrigaram o animal debaixo de uma varanda e eles correram a uma taberna que estava próxima. Longe estavam de adivinhar que no interior da loja os esperavam alguns problemas. E que problemas!
            
Após tomarem o seu copito, surge lá dum canto um fulano que se dirigiu a eles num tom ameaçador proferindo as seguintes palavras: Ora até que enfim, é hoje que o senhor mas vai pagar! Ai vai, lá isso vai! E com juros.
            
O incrédulo ancião mirou o fulano de alto a baixo e num tom bastante calmo balbuciou: Não creio conhecer o senhor de lado algum, quanto menos dever-lhe alguma coisa! Porém o outro insistiu: Deve sim, mas hoje não vai sair daqui sem pagar!
            
Como era de esperar este discurso não agradava ao homem, porém as circunstâncias aconselhavam calma e ponderação, algum gesto em falso e poderia acontecer alguma tragédia. Ocorreu então um espaço de tempo em que os interlocutores se estudavam, quando o fulano dirigindo-se uma vez mais ao forasteiro disse: Bom homem, por acaso o senhor se lembra de há alguns anos atrás, perto da cidade de Viseu, três militares entrarem numa taberna onde o senhor estava? Sim lembro! Dois desses militares comeram pão com sardinha e um outro ficou a ver como eles comiam, lembra-se? E continuou: O senhor então perguntou aquele que nada comia se não tinha também fome? Este respondeu que fome tinha mas dinheiro para comer é que não! E prosseguiu: O senhor deu então ordem ao taberneiro para me servir uma dose igual à dos meus colegas e pagou, sem me conhecer de lado nenhum, por isso meu caro amigo, não há dinheiro no mundo que pague o que fez por mim e não é o senhor que está em divida comigo mas sim eu com o senhor! Não fiquei a saber de onde o senhor era, tinha apenas uma vaga ideia de ter ouvido o nome de Vila Nova de Paiva, onde ainda o procurei, mas em vão. Porém o destino encarrega-se de nos pregar de vez enquando algumas surpresas e esta foi das melhores que me podia ter acontecido e já lá vão muitos anos. Porém, agora sinto-me no dever de retribuir o que o senhor fez por mim.
            
Como o temporal teimava em não dar tréguas os dois viajantes, agora mais calmos, rumaram à casa do fulano e pernoitaram ali, não só para alívio deles mas também do jumento que, desta forma, fez o trajeto em duas etapas e também porque ali bem perto estava a volta do Rossas e lá bem no alto da cascalheira os lobos já começavam uivar.


Em homenagem ao meu avô, José Camponês “tamanqueiro”

domingo, 30 de agosto de 2015

Piedade, o grande amor de Marçal!

De aspeto franzino e sempre sorridente, o Marçal era uma figura típica de então. Vítima de ataque de paralisia, ainda muito criança, esta doença deixara bastantes sequelas, nomeadamente a nível de locomoção. Porém, isto era apenas um pequeno contra-tempo no seu dia-a-dia, tornando-o o alvo de alguma chacota ou brincadeira que ele, de bom grado, aceitava e até colaborava.

Em criança nunca frequentou a escola, mas isso não o impedia de ser totalmente analfabeto. Nessa ocasião, teria por ali um vizinho, já mais velho, que sabia, pelo menos, ler e escrever e este ensinara-lhe o básico para, pelo menos, fazer o seu nome, o que para aquela altura era o bastante.

Quando chegou à altura das “sortes”, fora como os jovens da sua idade à inspeção militar, ficando, como era óbvio, livre de qualquer compromisso com o estado.

A sua deficiência física não o impedia de rabiscar as moças, chegando mesmo a ganhar fama de namoradeiro, porém este seu estatuto, não lhe permitia alcançar o seu objectivo, que era casar, não só pela deficiência em si, mas também pelo facto de ser pobre, ou seja, sem eira nem beira. À partida, as moças diziam que gostavam dele mesmo assim, mas os pais não estavam pelos ajustes e escorraçavam-no como cão sarnento.

Após algumas tentativas e promessas infundadas, já que não tinha quaisquer perspetivas de futuro, o nosso herói conseguiu uma pequena abertura de uma moçoila, provavelmente despeitada ou mesmo abandonada por um pretendente mais forte, pelo mesmo motivo de ser uma eira nem beira tal como ele. Não foi preciso raciocinar muito para concluírem que o casar não era o bastante, o problema era de que iriam viver? E onde iriam morar?

Por esta altura, ele conseguira um emprego como moço de lavrador, mas era apenas um emprego, sem remuneração, apenas pela “bucha”, como se diria agora. Ora isto não lhe permitia augurar nenhum futuro, assim sendo teria que haver outra maneira de rodear a situação, o que de facto aconteceu.

Um abastado lavrador, já entradote na idade, ficara viúvo e não tardou a passar a cantada à prometida do Marçal, embora a diferença de idades fosse um pouco assustadora, a moça, que já estava prometida, não se mostrou despeitada e vai daí ficou em dar a resposta ao velhote o quanto antes.

A Piedade, assim se chamava a moça, mandara recado ao “Marçal” para se encontrarem num determinado lugar, afim de esta pôr o seu já quase noivo ao corrente da promessa que lhe fora feita. Porém, à hora marcada o infeliz não pôde comparecer. As filhas de seu patrão, ao tempo umas raparigonas, gozavam com o moço, ao ponto de não lhe permitirem sair de casa, nem para ir namorar. Prisioneiro das patroas, não conseguiu ir ao encontro com a sua amada, ou pelo menos estar à hora marcada. Revoltado com a situação, pulava e bufava, que nem animal enjaulado. De repente, começou a gritar em altos berros que ia morrer e que fora acometido de uma forte dor de barriga, que se elas não o deixassem sair ele morreria e elas seriam, assim, as culpadas da sua morte. Gritando e barafustando, cada vez dava mais sinais de que, afinal, aquilo já era mesmo a sério e as moças não tiveram outro remédio se não abrir a porta e deixá-lo sair, pois não queriam ter a tal responsabilidade na possível morte do moço. É claro que tudo isto não passou de um estratagema para sair e ir ao encontro da noiva. Porém, ela já não se encontrava no ponto combinado mas sim em casa e aqui, de noite, o Marçal não entrava. Já não bastava ser pobre e ainda mal comportada… Isso é que nem pensar! A fama era pior do que a pobreza e ela não iria cair nessa de abrir a porta assim sem mais nem menos. Mas o fulano também sabia que aquela hora era impossível penetrar nos aposentos da sua amada sem arranjar uma maneira fraudulenta para ela lhe abrir a porta. Correu, manquitando de pedra em pedra, quando chegou, bateu à porta e fez-se anunciar, sou eu… De dentro, ela respondeu: Onde estiveste até agora, volta para lá! Não são horas de se bater à porta de ninguém! Tentou justificar-se, mas ouviu outro rotundo não. Hoje, nem pensar! O pobre homem pensou alguns segundos e argumentou: Tenho um presente para te dar, mete ao menos a mão por baixo da porta (abertura por onde entrava e saia o gato) e entrego-te a prenda e vou- me embora.

A pobre caiu na esparrela desejosa de saber o que era a prenda, meteu a mão na dita abertura e o Marçal zás, filou-lhe a mão e de seguida disse-lhe: agora ou abres a porta ou não te solto a mão e ficamos aqui toda a noite. O que decides? Não teve outro remédio que não fosse abrir a porta e rezar para que ninguém visse, caso contrário a sua reputação poderia ir por água abaixo e então nem o velho rico quereria uma mulher que metia o seu namorado em casa às tantas da noite.

Ficou acertado entre ambos que o melhor seria então ela casar com o tal lavrador e mais tarde quando ele se finasse, poderiam finalmente juntar os seus trapinhos e serem felizes para sempre. A Piedade casou com o velhote, de cujo enlace nasceu uma menina que quis Deus que ela não conhecesse o motivo que levara sua mãe a casar com o pai e assim partiu o anjinho para a eternidade, ainda, de tenra idade. Enquanto isso, o bom do Marçal continuava com as suas aventuras, juntamente com os outros rapazes, mas nunca descurando a oportunidade de lançar, pelo menos, um olhar matreiro para a sua amada, cada vez que se cruzava com ela, em sinal de que ele não a esquecera.

Uma coruja noturna, por essa altura uma ave desconhecida, fazia o seu arrepiante canto nos pinhais que circundavam a aldeia, levando as pessoas a interrogar-se, que canto seria aquele e quem o produzia. As opiniões dividiam-se e enquanto uns diziam que era algum bicho tresloucado que perdera a sua amada, outros, na sua a maioria, eram mais radicais e diziam que aquilo era obra do diabo, que andava rondando as almas, tentando-as ao pecado para depois se assenhorarem delas. Fosse como fosse aquilo metia medo e respeito, só quem não se atemorizava era um tal Quim do padre que, aproveitando o temor dos habitantes, lançava as armadilhas aos coelhos, sabendo à partida que ninguém o incomodaria e, assim, poderia “trabalhar” à vontade. Porém, uma certa noite, alguns rapazes munidos de enorme coragem pensaram em fazer algumas perguntas à “besta”. Chegaram a uma centena de metros do local onde se ouvia o bicho e quando este cantou eles perguntaram: Se és da parte de Deus diz o que queres, se és da parte do diabo vai par o inferno! Ora nesse dia o tal Quim andava lá para esse lado e de pronto respondeu a todo o pulmão: Sou da parte do diabo!...Não foram precisas mais explicações, a rapaziada desatou a fugir, só parando na taberna do Arrabalde, tendo chegado em primeiro lugar o Marçal, mesmo sendo coxo. Uma vez aí, contaram o sucedido e não demorou muito a que por muito tempo se tornasse um mito, onde toda agente acreditava que se tratava de alma penada, levando as pessoas a recolher mais cedo e nunca mais ninguém se atreveu a fazer perguntas ao pobre do animal.

O Marçal tinha um vizinho, que em nada os diferenciava, exceção feita à manquidão, no entanto o aspeto físico era muito idêntico, assim como as graçolas que ambos contavam. Certo dia alguém o apelidou de “PITEFE”, na intenção clara de o chamar de patife, porém acharam tal piada ao apodo que o pobre do homem passou a ser conhecido por Pitefe, convenhamos que também não se importava muito, já que a dignidade humana naquele tempo pouco contava e como quem precisa ouve e consente, foi precisamente o que aconteceu.

Enquanto novo, foi trabalhando à jorna dando o dia pela malguita do caldo e pouco mais, já que as pagas eram sobretudo do género “trabalhas, comes, não trabalhas, olhas” e por ai adiante... Quando começou a ser rejeitado para trabalhar, aparecera-lhe a oportunidade de ser coveiro, profissão que desempenhava com denodo. Muito zeloso e cuidadoso com o que fazia, cedo o Pitefe, agora na qualidade de coveiro, granjeou a estima de toda a gente, muito laborioso, estava sempre pronto a todas as solicitações para que era chamado, nomeadamente atendendo as viúvas que eram as que mais trabalho lhe davam, arranjando as sepulturas, capinando alguma erva que despontava aqui e alem. Porém, nem tudo eram rosas porque a paga destes favores resumia-se praticamente a uma côdea de pão que alguma velhota lhe levava debaixo do avental, onde constantemente limpava o nariz, mas não era isso impeditivo de ele saborear o tão doce naco de pão. O Pitefe tinha outros atributos, que lhe eram peculiares, nomeadamente o fazer crer às pessoas que falava com os mortos e tanto que assim era que certo dia o Marçal, ao sair de casa, deparou com o Pitefe de joelhos à entrada da sua cabanita, mãos levantadas ao céu, olhos postos no horizonte e pelo movimento dos lábios e posição do corpo tudo indicava que fazia alguma prece. Abeirou-se o Marçal e perguntou: Ó Pitefe o que fazes nessa posição? O Pitefe respondeu: Peço a Deus para que morra alguém, senão não tenho trabalho e morro à fome! E isso resulta? Interroga o Marçal.

Tem resultado, Deus é meu amigo e quando me vê nesta aflição, lá chama alguém para eu ter que fazer e assim ganhar alguma coisita. Seguiu viagem o Marçal mas aquilo das preces darem resultado deixou-o meio intrigado e algum tempo depois voltou a entabular conversa com o vizinho, que sempre muito afável lá ia respondendo às piadas do outro. Só que o Marçal maquinara um plano e tinha de o pôr em prática quanto antes. Assim, ganhou coragem e disse ao Pitefe: -Ouve lá! Faz lá uma reza ao Divino, para ele levar aquele demónio que casou com a Piedade, porque a ele este mundo já não interessa e a mim fazia-me um grande favor, para finalmente casar com ela! E se resulta? Interroga o Pitefe! Há que bom, se resultasse. Garanto-te que nos daríamos muito bem no futuro, não terias mais privações, até deixarias de ser coveiro e passavas a viver lá em casa, não te faltando nada. A casa é enorme as terras são a perder de vista, uma boa junta de vacas um bom cavalo e como vês eu não me posso lá mover muito bem, serias o meu lavrador! Que me dizes? Ò Marçal e se o homem se fina? Quem acarreta com a responsabilidade? Sou eu naturalmente! Nada disso, se ele se finar a felicidade de nós três e o velho ninguém o chora. A filhita ainda é pequena e pelo aspeto também cá não vai andar muito tempo, como vês nada se perde se o desalmado deixar este mundo.


O Pitefe de repente viu-se a aplaudir a ideia do Marçal, pensou, pensou… e concluiu que mais um pedido ao criador, não o iria incomodar e vai daí, todos os dias fazia a mesma reza, embora agora com mais afinco, com a perspetiva de mudar de vida. Sabendo de antemão que nada valeria, o Pitefe não desistia e eis que um certo dia as suas súplicas deram fruto e o pobre do velhote finou-se, não pelo facto das rezas, mas sim pela senilidade, deixando o caminho livre ao Marçal.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Império do Gelo: quando o frio abraça a água

Desta vez trago-vos um conto de amor. Contado por imagens, já que as palavras, neste conto, são desnecessárias.

Quando o frio extremo abraça a água, nasce um império de gélidas formações que nos deliciam com a sua rara beleza. 

Ficamos petrificados a olhar para elas e de imediato nos apaixonamos pelas maravilhas com que a mãe natureza nos presenteia quando permite que alguns elementos se unam. 

Aqui ficam as fotografias que tirei, num daqueles raros momentos, em que o frio abraçou a água dando corpo a estalactites, estalagmites e contornos de gelo.

Agora, já só restam estas fotos, porque este amor, apesar de belo, é raro e efémero... 

É, porém, um amor de uma beleza avassaladora e inesquecível!




































quarta-feira, 10 de abril de 2013

O padre manquinho: Bom homem e bom pai, não de 8 mas de 9 filhos


Os sinos dobravam a finados, provocando nas pessoas da aldeia um arrepio que percorria toda a espinha dorsal. Quem seria que se finou? Era a pergunta que sempre se faz, nestas circunstâncias. Porém, desta vez, não era um qualquer comum mortal que partira ao encontro do Pai!
                
           A noticia correu célere e não causou grande espanto, já que o agora defunto há muito que se debatia com uma debilidade senil, acompanhada por deficiência física que lhe valera a alcunha de “manquinho”.
Isso mesmo! O padre manquinho morreu!
                
           O abade chegara à aldeia acompanhado por uma empregada, que a princípio se pensara que seria sua sobrinha, porém o facto de carregar consigo uma criança, cedo levou à desconfiança de que aquilo era algo mais do que empregada.
           
          Veio a saber-se que o Sr. abade iniciou o seu ministério numa outra terriola e que depressa lhe foram imputadas suspeitas de mulherengo. Ora a suspeita era nem mais nem menos do que a empregada, que tinha um irmão sapateiro. Este ao saber da história do padre com a irmã, terá ameaçado matá-lo. Cheio de medo, e para se livrar de mais falatórios, o bispo terá então colocado o padre noutra freguesia, onde paroquiou até à morte.

                O seu ministério foi longo e atribulado. Os filhos da sua empregada e dele, naturalmente, passou da meia-dúzia e à medida que a família ia crescendo, surgiam muitas interrogações sobre como era possível um padre, condutor de almas, viver maritalmente com uma mulher sem que as autoridades eclesiásticas soubessem ou, então, o permitissem.

                O certo é que dadas as circunstâncias, o “casal” pelo jeito vivia feliz e os seus paroquianos também não se importavam muito com a situação.

                Naquela altura os meios de comunicação social não davam tanta importância a casos como este, dando a entender que até seriam comuns e existiriam muitos mais como este. Provavelmente, “BELL” ainda não teria descoberto a caixinha mágica que permitia as comunicações por fio.

                Certo, certo, é que não se sabe porque tralhas malhas o bispo, mesmo lá longe, veio a ter conhecimento da situação. Por ventura, algum “bufo” que terá rosnado aos ouvidos do fulano e, claro, a partir daqui, já não havia volta a dar! Era seguir com o processo e destituir o abade que, agora mais que nunca precisava, do seu trabalho para sustentar tão enorme família.

                Uma intimação foi o suficiente para convocar o prior a se apresentar no “Paço”, a fim de prestar declarações perante a Cúria diocesana.

                O grande dia chegou e com bastante dificuldade o prior pôs-se a caminho em direção a Lamego onde, possivelmente, o esperava uma estranha receção. Por ventura ele já contava com o desfecho que iria ter o encontro, mas que iria fazer, nada mais do que se resignar perante os factos e, claro está, conformar-se com a decisão que o bispo tomasse.

                O caminho era longo e a “besta” que montava demasiado pachorrenta. Porém, a pressa também não era nenhuma, quanto mais longo fosse o percurso mais tempo o padre tinha para meditar, na sua precária situação. Nesta altura, só mesmo o “breviário”poderia dar-lhe algum conforto e paz de espírito.

                Ao entrar em Lamego pelo lado oeste, o animal parou para se dessedentar na fonte de Lázaro, antes de iniciar a descida para a ponte sobre o “Balsemão”, onde miúdos e adolescentes, mostravam os seus dotes de mergulhadores, pulando da ponte para o pego de água cristalina que corria a alguns metros mais abaixo.

                Os forasteiros não resistiam ao apelo das crianças para lhe darem uma moeda, por mais pequena que fosse, sempre com a condição de a atirarem á água e eles, de seguida, mergulharem e agarrá-la, mesmo antes desta chegar ao fundo. Por vezes, não eram bem sucedidos mas, na maior parte das vezes, tinham êxito e iam amealhando uns trocados para comprar os rebuçaditos.

Ora o padre manquinho, não fora uma exceção e enquanto o “pajem” que o acompanhava, que era por certo um dos filhos mais velhos, tentava abrir caminho enxotando a canalhada, o bom velho levou a mão ao bolso da devotada batina e terá também atirado o tostão para o abismo a fim de ser apanhado pelo mais audaz dos garotos.

                Passou em frente à Sé Catedral e terá rezado, não pelos outros como era costume, mas sim por si e só por si, já que bem iria precisar de ajuda divina.

                Chegado ao “Passo”, um enorme calafrio percorreu todo o seu corpo, mesmo antes de se apear, já que a sua vontade era seguir em frente e só parar em lugar nenhum, onde continuasse apenas a imaginar o que iria acontecer. Mas, além do mais, era um homem de fé e o seu pecado, resumia-se apenas aos vícios carnais e nunca poderiam ser encarados, como pecados mortais, esses sim que levam à condenação eterna.

Melhor fora criar todos os rebentos com carinho e dignidade, do que assassiná-los á nascença, ou durante a gestação, aí sim seriam pecados imperdoáveis! Porém, ele não carregava com tal fardo, de modo que a sua cruz não era tão pesada como muita gente fazia crer. Não foi Cristo que impusera o celibato, foram antes os homens, por isso ele apenas terá pecado perante estes e não contra Deus. Assim sendo, a sua justificação seria muito mais fácil e convincente.

 Por certo o bispo iria colocá-lo entre a espada e a parede e ele só teria que resignar-se, perante os factos, ou então argumentar, uma tese forte, permitindo-lhe sair airosamente de cena.

                Desmontou no átrio do “Passo” e, lentamente, dirigiu-se para a escadaria em pedra, que o levava até ao sumptuoso salão, onde já estivera por outras vezes, mas em situação diferente. O seu coração agora batia mais pausadamente, muito embora ainda arfasse a cada degrau que com alguma dificuldade ia subindo. A porta estava semi- aberta e, pela pequena abertura, pôde vislumbrar a silhueta do bispo e de mais um ou dois sacerdotes, que identificou como, sendo o Vigário-Geral e o seu coadjutor.

                Entre! Entre, padre António, já o esperávamos! Então, boa viagem?

    A resposta foi clara: Menos má; Menos má!

   Com uma pequena inclinação, bajulou o anel bispal solicitando a bênção do bispo. Terminadas as formalidades o padre ocupou uma das cadeiras que lhe fora destinada e, agora sentado comodamente, preparou-se para ouvir o sermão que pensava ele lhe estava destinado, não seria bem um sermão , seria isso sim um julgamento, que por certo o iria destituir das suas funções.

                O bispo tomou então a palavra e começou por elogiar o trabalho na paróquia, na sua missão pastoral. No entanto, prosseguiu: O que o trouxe aqui padre António é um caso bem diferente! Correm rumores muito pouco favoráveis a seu respeito e que, a serem verdade, envergonham todo um clero, que pretende pautar o seu ministério pela honestidade, numa doutrina sã e cristã, apoiada nos valores morais e intelectuais! Ora o que me parece é que o padre violou todos estes preceitos e vai daí passa a viver maritalmente com a sua criada e bem mais grave com alguns filhos à mistura!? Queira-me corrigir se estou enganado padre António! Segundo me parece são oito! Ou estarei enganado?

                Fez-se um silêncio sepulcral na sala…O padre, como que meditando profundamente na resposta, aguardou alguns segundos e respondeu: Nove, eminência, nove! E o facto de a minha criada viver debaixo do mesmo teto que eu, não a torna minha meretriz, nem muito menos minha amante! É sim mãe dos seus próprios filhos e só por isso a considero uma boa mãe e uma boa criada, muito cuidadosa e zelada, também muito votada às causas religiosas.

            Então confessa que os filhos da sua criada também são seus?

Não confirmo nem desminto, eminência reverendíssima!

Quer dizer então, que as crianças nascem debaixo do seu nariz e o senhor nada sabe! Pois bem, quero dizer-lhe o seguinte: A partir de agora o senhor deixa de ser sacerdote! Em breve, tratarei dos documentos que serão enviados para Roma, pedido a anulação de sacerdote, não podendo desta forma celebrar mais missa, nem desempenhar outras funções, relacionadas com o sacerdócio! Alguma coisa a acrescentar?
                
             Nada, eminência!

E levantou-se! Quando se dirigia para a porta, olhou de soslaio para o bispo, percorrendo com o olhar os outros dois e disse:

Ah… Importa-se de me dizer o que eu vou fazer, a partir deste momento, para criar aquela garotada toda? Como o Sr. vê sou velho e aleijado, nunca soube fazer mais nada a não ser exercer o meu ministério, na condução de almas para o paraíso e, quanto a isto, estou de consciência tranquila! Agora, só tenho duas hipóteses:

 Primeira: Coser a boca a todos lá em casa!

Segunda: Dar um cajado a cada um e uma manta e mandá-los por essa estrada fora, assaltar os pobres dos viajantes e olhe que eles são tantos que não tardam em chegar aqui a Lamego e, então, eminência, terá oportunidade de os conhecer! Com licença! Tirou o colar do pescoço e colocou-o em cima da mesa.

                Já no limiar da porta e sem mais olhar para trás, ouviu como que um grito abafado nas suas costas.

Pare, padre António, por Deus!

Parou com um pé fora e outro dentro e preparou-se para ouvir a estocada final, sim porque ele agonizava, numa agonia lenta, já que sabia que a resposta que dera ao bispo era como que uma blasfémia e não tinha perdão, pelo menos aos olhos da Santa Madre Igreja, por certo seria excomungado e não mais obteria o perdão.

                Levou uma vida inteira a converter almas e agora em segundos perderia a sua, lamentava-se e já estava arrependido de ter afrontado o bispo, mas que diacho, já não podia voltar a trás! Estava dito! Estava dito!

                Voltou-se lentamente e encarou o bispo de frente, muito embora sem coragem para o fixar nos olhos, balbuciou apenas: Sim V. eminência!

                Como sabe meu caro! Não é correto o que o Sr. fez, o exemplo que dá aos seus paroquianos é, a todos os títulos, reprovável! Jamais a igreja consentiria numa tão grande abomina, mas atendendo ao facto da sua idade e ainda a forma como os seus paroquianos aceitam ter como guia espiritual um padre que violou as regras eclesiásticas, peço-lhe pois que o senhor volte lá para a sua paróquia e continue com o seu ministério, até que uma nova ordem lhe seja dada.

                Regressou o bom homem a casa onde o aguardava a sua “criada” e o restante clã.

Epilogo: O padre morreu velhinho e conta-se que celebrava a missa sentado numa cadeira e que era levado ao colo para o altar por um dos seus filhos. Da diocese nunca mais chegou a ordem que destituiria um bom homem e um bom pai não de 8, mas de 9 filhos.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

O heróico salvamento do cabrito, Pega! Pega!


A erva jóia já estava apendoada e baloiçava ao sabor de uma leve brisa que se fazia sentir no vale, ficando a incógnito para que lado iria cair, era mais uma questão de dias e se a foice não se apressasse não tardaria a escolher o lado para se deitar e assim dar a sensação de finalmente adormecer num merecido descanso.

As águas no rio corriam lestas a caminho do oceano, não se descuidando no seu desenfreado canto, quando esbarravam em enormes rochas, flagelando os seus sedimentos graníticos, amaciando a sua aspereza, tornando-a lisa como a seda.

Uns metros mais acima cruzavam-se os dois rios, abraçando-se num abraço aterrador, disputando entre si qual dos dois chegaria primeiro ao leito materno e aí poderem finalmente terminar a sua súplica, depois de tantos tormentos que passaram desde a sua formação.

A espuma branca parecia indicar que uma raiva endemoninhada se tinha apoderado dos dois, sem nenhum deles dar o braço a torcer, como que se ambos lutassem pelo mesmo direito, mas sem que chegassem a qualquer conclusão.

Um pouco mais a nascente, um velho moinho rosnava qualquer coisa impercetível, sempre que as penas do rodízio eram empurradas pela força da água, que estrangulada, pela chavelha ao fundo da cale, impelia uma força brutal que deixava a sensação de arrancar cada uma dessas peças de madeira, transformando-as em simples objetos imprestáveis.

Recairia sobre o velho moleiro a responsabilidade de o reparar, se alguma anomalia o atacasse.

Durante a meninice, passei algumas horas a tentar contar as voltas que aquela gigantesca roda dava debaixo de água, mas sem qualquer êxito e, quando no verão não havia água para o mover, procurava os ninhos que habilidosas carriças por ali os faziam.

As fortes trovoadas, que alguns dias atrás ribombaram durante a noite e cujos raios iluminavam o escuro vale, foram sinónimo de fortes chuvadas que encheram os rios e ribeiros, dando lugar ao forte caudal, que o leito pedregoso tinha dificuldade em conter.

Um pouco a sul o sinuoso rio descansava agora numa larga açude que parecia convidar as revoltadas águas a um merecido descanso e que finalmente iria serenar as agitadas correntes, como que a arranjar ânimo para continuar a luta e abraçar de novo os obstáculos que iriam encontrar ao longo do seu percurso até se encontrarem lá bem longe com as suas congéneres águas salgadas.

Enquanto na margem direita do rio se estendiam grandes terrenos de cultivo, na margem oposta a inclinação do terreno era de tal forma acentuada que o seu amanho era impossível, daí que se erguiam grossos castanheiros e alguma cerejeira brava que para pouco mais servia, que não fosse para alimentar a passarada, na época da caroia!

O caminho de acesso à quinta era demasiado íngreme e distava algumas centenas de metros da aldeia, que demorava cerca de meia hora a percorrer e, ainda por cima, tinha que se atravessar o rio Mau, por umas poldras traiçoeiras que substituíam as que em tempos foram colocadas mas que agora, com as fortes cheias, foram água abaixo.

No verão as lagartas que se cruzavam em longas filas, desde a Casinha até ao Premoço, causavam arrepios e comichão quando, sem se dar conta, eram pisadas com pés gretados e descalços, como então era o meu caso.

Cheguei a percorrer aquela distância várias vezes ao dia e não tinham conta as moucadelas que dava aqui e além, pondo os dedos dos pés em chagas vivas.

Numa dessas viagens e fazendo valer a curiosidade de criança, descobri um ninho de gaio, bem alto, na copa de um pinheiro.

Não pensei duas vezes e vai de subir a árvore com muita dificuldade, já que era bastante alta e grossa de mais para a abarcar.

Assim que chegasse às trepes, a dificuldade diminuía e, de galha em galha, o percurso até ao ninho era mais rápido e cómodo. Porém, após tanto sacrifício, verifiquei que o maldito já era velho, ou seja, do ano anterior.

Fiquei desanimado e vai de descer o mais rápido que podia e fi-lo de tal forma que nem reparei que na base do pinheiro e muito bem enroscada estava uma enorme cobra, que ao sentir o meu pé descalço a interromper-lhe o seu descanso, deve ter ficado mais assustada do que eu, pois a sua reação não foi de ataque mas sim de medo, visto que fugiu a sete pés enquanto eu fazia o mesmo mas em direção oposta.

Escusado será dizer que não ganhei para o susto, já que o caso não era para menos.

Das cortes do Catito avistava-se todo o vale, dali podíamos usufruir duma bela paisagem, onde na primavera as árvores de fruto emprestavam ao local um colorido deslumbrante, que faziam adivinhar uma boa época de fruta, que por sinal era bastante diversificada.

Deste local diz-se que certo dia, o tal Catito estaria por ali em amena cavaqueira com um vizinho e lhe terá contado que certa altura se encontrava por ali de noite, mas uma noite muito escura, como bucho dizia…Então passou por ele um vulto muito grande, que só consegui identificar quando ele subia do outro lado do vale, pela Covada acima e que só então se deu conta que era um enormíssimo lobo de rabo caído!

Ora o vizinho perante tal narrativa interrogou-o, nestes termos: Então ó Catito; então estava tão escuro e tu vias o lobo lá do outro lado?!
O Catito, dando-se conta que tinha sido apanhado no logro, atalhou: Não, que fazia luar como de dia!

O Catito tinha destas coisas!...

Nesse dia o céu estava com um ar carregado, abrindo aqui e além pequenas janelas, por onde rompiam alguns raios de sol, que concediam ao vale um colorido tropical, não faltava o cantar estridente dos grilos e de uma ou outra cigarra que deixava adivinhar que o estio não iria tardar.

Na quinta já pouca gente morava, um casal de meia-idade com os seus oito filhos e uma senhora um pouco mais velha, além de nós, que, embora residíssemos na aldeia, era ali que passávamos a maior parte do tempo, já que também tínhamos ali uma casa para viver com desafogo e alguma comodidade.

Os dias passavam lentamente e os passatempos das pessoas não eram muito diferentes uns dos outros, enxada na mão e vai de esgravatar a terra, que era desta que tudo vinha.

Poucos terrenos eram aráveis, pelo que todos ou quase todos os trabalhos tinham que ser feitos manualmente.

Nos calços mais áridos, já estavam dispostos e alinhados alguns montitos de esterco, que aguardavam o dia da vessada para serem espalhados pela terra, que aguardava ansiosa pelo fertilizante, que lhe iria proporcionar uma melhor produtividade.

Enquanto eu apascentava algumas cabeças de gado, minha mãe punha mato novo na corte.

Um cabrito de tenra idade, incapaz de acompanhar o gado adulto, ficava fechado, fazendo uma gritaria durante o dia, sempre à espreita de uma oportunidade para fugir, o que aconteceu precisamente naquele dia.

O danado do cabrito saiu esbaforido com destino ao rio, talvez confundindo o barulho da água, 
com algo que lhe parecesse familiar.

Como eu estava por ali perto, não pensei duas vezes e vai de partir desenfreadamente atrás do maldito, que parecia ter asas nas patas.

O rio ficava cada vez mais perto, mas a certa altura eu tinha a situação controlada e a sua captura estava por segundos.

Foi já na margem que consegui agarrar uma pata do bicho e evitar a sua queda na água, porém a terra fugiu debaixo dos meus pés e zás! Os dois para dentro de água.

Caindo de caleira em caleira, sempre com o animal seguro pela pata, chegamos ao açude, onde a profundidade da água era de tal forma que fiquei sem pé.

Na margem a aflição da minha mãe era impossível de descrever, gritando por socorro, que não havia de chegar.

Não tive outra alternativa que não fosse largar o cabrito e tratar de nadar para a outra margem, que era a que ficava mais perto e a água mais serena.

Finalmente em terra firme e a minha mãe mais aliviada daquele instantâneo sofrimento, continuei na perseguição do bicho, que entretanto também nadou, na mesma direção.

Agora, já não havia gritos de aflição, mas sim gritos de, pega, pega!

Cansei o animal e filei-o com unhas e dentes, devolvendo-o ao curral de onde ele nunca deveria ter saído.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

A FEIRA: A verdadeira história do petiz que tudo fez para comer um belo prato de grão-de-bico


A azáfama começava de véspera, toalhas brancas de linho envolviam a cesta de vime, onde eram arrumados e ordenados os queijos que seriam vendidos na feira quinzenal de Castro Daire.

Assim, pela manhã bem cedinho e depois de aparelhado o jumento, lá rumamos nós com destino à vila.

Minha mãe carregava à cabeça um enorme cesto cheio de ovos e que em algumas das vezes ultrapassava o meio milhar, era um peso enorme só possível de suportar por alguns, pois o cuidado a ter com aquele tipo de mercadoria e o acidentado do terreno eram motivo suficiente para pôr os cabelos em pé ao mais atrevido.

Ora como se isto não bastasse, ainda era acrescida a dificuldade do poiso do cesto, já que não eram frequentes as paredes suficientemente sólidas e com altura adequada, para o descanso do transportador.

Desta forma, os locais de descanso eram previamente escolhidos e cada uma das mulheres que faziam aquele trabalho tinha o seu lugar reservado.
Assim que era colocado o cesto à cabeça da mulher esta só iria parar alguns quilómetros mais à frente, no dito local de descanso, repetindo-se estas paragens até ao lugar de recolha dos ovos.

Com a cesta dos queijos a coisa era um pouco diferente, isto para mim claro, que já tinha por essa altura uma preciosa colaboração de uma gigantesca burra que meu pai adquirira em S. Joaninho a uma senhora de nome Carma. Este animal era tão dócil que não fazia distinção no fulano que a conduzia, ou seja acatava as ordens fosse de gente graúda ou miúda.

Colocado o cabaz dos queijos em cima do albardão do animal, de pronto eu também saltava e ala que se faz tarde! Aí vai a comitiva a caminho da feira.

Porém, desta vez, não iria correr tão bem como de tantas outras em que a cena se repetia, e isto porque eu numa estúpida brincadeira fracturara o braço direito e por isso estava irremediavelmente diminuído fisicamente, necessitando de ajuda de terceiros, para fazer as operações de montar e desmontar.

Ainda assim, não faltava gentes que generosamente me valessem para executar estas manobras. Em casa tudo era resolvido com facilidade, mas no Alto de Farejinhas a situação era um pouco mais grave, tinha que esperar que alguém passasse para me ajudar a desmontar, pois o caminho dali até à povoação era tão íngreme que só mesmo a pé se conseguia descer pelo carreiro que serpenteava as enormes marinheiras, com aquelas grossas raízes à flor da pele, como quem diz à flor de terra, e pedras soltas que se tornavam um tremendo obstáculo. 

Logo ao fim da descida surgia uma rua estreita ladrilhada com calçada à portuguesa bastante desgastada pelo uso, pelo que se tornava ainda mais perigosa, já que a água que por ali passava fazia com que se tornasse bastante escorregadia.

Dali já se via a casa grande, onde segundo a lenda os Santos Mártires por ali passaram e cujas mulas que os transportavam bateram à porta e como ninguém lha terá aberto, as ditas seguiram caminho, não sem antes o formato das suas ferraduras tivessem ficado gravadas no sítio onde bateram. Não creio que tivesse sido assim, já que por mais que mirasse o local, sinceramente, nunca vi nada parecido com um rasto de ferradura gravado fosse em que local fosse.

Ora todo este trajeto era percorrido a pé até mais ou menos ao meio da calçada, onde a partir dali a descida era mais suave e assim a jornada já poderia ser feita de novo montado no animal.

Ajeitada a burrinha a um patim ali existente, era só colocar a cestinha de novo na albarda, montar e lá vamos nós.

Só que não foi bem assim, quando coloquei a cesta com os queijos em cima da burra e me preparava para montar, esta, pensando que a carga já estava completa, deu um passo em frente o suficiente para eu me desequilibrar e zás, para eu não cair, lá vai a cesta com os queijos parar ao chão.

Aterrado! Foi como eu fiquei! Sem ponta de sangue!

O caso não era para menos, alguém apareceu e socorreu-me, confortando-me com palavras carinhosas, mas eu lavado em lágrimas, não parava de pensar em qual seria a reação da minha mãe que, por esta altura, já devia estar à minha espera na vila.

A situação foi normalizando e retomei o caminho, agora um pouco mais calmo já que o prejuízo não me pareceu assim tanto, apenas dois queijos mais frescos, se haviam partido ao meio, porém eram os mais caros, cinco escudos cada.

Por certo o meu castigo não ia ser assim tão severo como a princípio o imaginei, já que iria ter a compreensão de minha mãe.

Certo, certo era o almoço que ia ser bem diferente, já que o famoso grão-de-bico de que eu tanto ansiava ia ser substituído por queijo! Bom, de mal o menos…

Como eu já pressentia, minha mãe já desesperava com o meu atraso e foi um pouco exaltada que me perguntou o motivo de tanta demora, pu-la ao corrente da situação e, como eu suspeitava, ficou logo ali decidido que grão não ia haver, já que era preciso comer os queijos partidos.

As vendedeiras, alinhadas no passeio da estreita rua, aguardavam os clientes que por ali passavam, sempre na mira de vender o seu produto primeiro que os outros.

Lá ao fundo da rua já se vislumbrava o cobrador do assento, que munido de vários livrinhos, cada um de sua cor, ia recebendo a taxa pela ocupação do espaço.

Esta era a altura de eu ficar com o negócio sozinho, enquanto minha mãe, após pagar ao cobrador, ia fazer as compras para as freguesas que a troco dos ovos e dos queijos, mandavam ir saias, aventais, couves, cebolo, tamancas, alpercatas e tantas outras coisas como remédios, venenos para ratos, etc.

Lembro que eu era demasiado pequeno para ficar à frente do negócio, mas tudo era acautelado para não ser enganado, de tal forma que a mercadoria era previamente selecionada dentro da cesta e devidamente ordenada por tamanhos e cada secção tinha o seu preço. Os mais baratos rondariam os vinte e cinco tostões e os mais caros os cinco escudos.

Não tardou e eu, como de costume, comecei em primeiro lugar a vender o meu produto, não tardando nada a restarem apenas os tais dois partidos, que por ironia do destino estava destinados a ser consumidos ao almoço.

Era imperativo que eu tentasse tudo por tudo para vender aqueles dois danados que se estavam a atravessar entre mim e o pratito de grão, por isso não hesitei em fazer uma grande lamúria, acompanhada claro está pelo apregoamento da qualidade do produto, de tal forma que havia quem parasse só para assistir aquela cena.

Quem não achava graça nenhuma era a minha mãe que da esquina dava uma espreitadela, mas com vergonha da ladainha por mim recitada, voltava a recuar, para esperar o momento em que eu me calasse, para então dar por terminada a venda.

Não demorou muito que dois fulanos, com cara de negociantes de gado, já que se encostavam a grossos paus de junco, se detivessem junto a mim e perguntaram o motivo de tal choradeira, tendo eu respondido de imediato que por acidente se tinham partido aqueles dois exemplares e se eu os não vendesse iria com certeza sofrer as consequências, com um grave corretivo.

Bom, disse um dos indivíduos, Quanto custa então cada um?

Não hesitei e respondi: Minha mãe mandou-me vendê-los por seis escudos cada mas, se o senhor me der cinco e quinhentos eu vendo!

 Voltou-se este para o outro e disse: Vá, compra lá um que eu compro o outro!

- Nem pensar, para que quero eu o queijo? Hoje vou mas é comer carne!

- Leva-o de presente à tua mulher e assim acabamos com a agonia do garoto.

Aqueles “amigos”, que inesperadamente me salvaram, não só pagaram o justo como ainda me deram dez tostões a mais que eu guardei sem a minha mãe saber.

Resta acrescentar que o grão na taberna da Maria do Arcádio estava muito saboroso.