A erva jóia
já estava apendoada e baloiçava ao sabor de uma leve brisa que se fazia sentir
no vale, ficando a incógnito para que lado iria cair, era mais uma questão de dias
e se a foice não se apressasse não tardaria a escolher o lado para se deitar e
assim dar a sensação de finalmente adormecer num merecido descanso.
As águas no
rio corriam lestas a caminho do oceano, não se descuidando no seu desenfreado
canto, quando esbarravam em enormes rochas, flagelando os seus sedimentos
graníticos, amaciando a sua aspereza, tornando-a lisa como a seda.
Uns metros
mais acima cruzavam-se os dois rios, abraçando-se num abraço aterrador,
disputando entre si qual dos dois chegaria primeiro ao leito materno e aí
poderem finalmente terminar a sua súplica, depois de tantos tormentos que
passaram desde a sua formação.
A espuma
branca parecia indicar que uma raiva endemoninhada se tinha apoderado dos dois,
sem nenhum deles dar o braço a torcer, como que se ambos lutassem pelo mesmo
direito, mas sem que chegassem a qualquer conclusão.
Um pouco
mais a nascente, um velho moinho rosnava qualquer coisa impercetível, sempre
que as penas do rodízio eram empurradas pela força da água, que estrangulada,
pela chavelha ao fundo da cale, impelia uma força brutal que deixava a sensação
de arrancar cada uma dessas peças de madeira, transformando-as em simples
objetos imprestáveis.
Recairia
sobre o velho moleiro a responsabilidade de o reparar, se alguma anomalia o
atacasse.
Durante a
meninice, passei algumas horas a tentar contar as voltas que aquela gigantesca
roda dava debaixo de água, mas sem qualquer êxito e, quando no verão não havia
água para o mover, procurava os ninhos que habilidosas carriças por ali os
faziam.
As fortes
trovoadas, que alguns dias atrás ribombaram durante a noite e cujos raios
iluminavam o escuro vale, foram sinónimo de fortes chuvadas que encheram os
rios e ribeiros, dando lugar ao forte caudal, que o leito pedregoso tinha
dificuldade em conter.
Um pouco a
sul o sinuoso rio descansava agora numa larga açude que parecia convidar as
revoltadas águas a um merecido descanso e que finalmente iria serenar as
agitadas correntes, como que a arranjar ânimo para continuar a luta e abraçar
de novo os obstáculos que iriam encontrar ao longo do seu percurso até se
encontrarem lá bem longe com as suas congéneres águas salgadas.
Enquanto na
margem direita do rio se estendiam grandes terrenos de cultivo, na margem oposta
a inclinação do terreno era de tal forma acentuada que o seu amanho era
impossível, daí que se erguiam grossos castanheiros e alguma cerejeira brava
que para pouco mais servia, que não fosse para alimentar a passarada, na época
da caroia!
O caminho de
acesso à quinta era demasiado íngreme e distava algumas centenas de metros da
aldeia, que demorava cerca de meia hora a percorrer e, ainda por cima, tinha
que se atravessar o rio Mau, por umas poldras traiçoeiras que substituíam as que
em tempos foram colocadas mas que agora, com as fortes cheias, foram água
abaixo.
No verão as
lagartas que se cruzavam em longas filas, desde a Casinha até ao Premoço,
causavam arrepios e comichão quando, sem se dar conta, eram pisadas com pés
gretados e descalços, como então era o meu caso.
Cheguei a
percorrer aquela distância várias vezes ao dia e não tinham conta as moucadelas
que dava aqui e além, pondo os dedos dos pés em chagas vivas.
Numa dessas
viagens e fazendo valer a curiosidade de criança, descobri um ninho de gaio,
bem alto, na copa de um pinheiro.
Não pensei
duas vezes e vai de subir a árvore com muita dificuldade, já que era bastante
alta e grossa de mais para a abarcar.
Assim que
chegasse às trepes, a dificuldade diminuía e, de galha em galha, o percurso até
ao ninho era mais rápido e cómodo. Porém, após tanto sacrifício, verifiquei que
o maldito já era velho, ou seja, do ano anterior.
Fiquei
desanimado e vai de descer o mais rápido que podia e fi-lo de tal forma que nem
reparei que na base do pinheiro e muito bem enroscada estava uma enorme cobra, que
ao sentir o meu pé descalço a interromper-lhe o seu descanso, deve ter ficado
mais assustada do que eu, pois a sua reação não foi de ataque mas sim de medo,
visto que fugiu a sete pés enquanto eu fazia o mesmo mas em direção oposta.
Escusado
será dizer que não ganhei para o susto, já que o caso não era para menos.
Das
cortes do Catito avistava-se todo o vale, dali podíamos usufruir duma bela
paisagem, onde na primavera as árvores de fruto emprestavam ao local um
colorido deslumbrante, que faziam adivinhar uma boa época de fruta, que por
sinal era bastante diversificada.
Deste local diz-se que certo dia, o tal Catito estaria por ali em amena cavaqueira com um vizinho e lhe terá contado que certa
altura se encontrava por ali de noite, mas uma noite muito escura, como bucho
dizia…Então passou por ele um vulto muito grande, que só consegui identificar
quando ele subia do outro lado do vale, pela Covada acima e que só então se deu
conta que era um enormíssimo lobo de rabo caído!
Ora
o vizinho perante tal narrativa interrogou-o, nestes termos: Então ó Catito; então
estava tão escuro e tu vias o lobo lá do outro lado?!
O
Catito, dando-se conta que tinha sido apanhado no logro, atalhou: Não, que
fazia luar como de dia!
O
Catito tinha destas coisas!...
Nesse
dia o céu estava com um ar carregado, abrindo aqui e além pequenas janelas, por
onde rompiam alguns raios de sol, que concediam ao vale um colorido tropical,
não faltava o cantar estridente dos grilos e de uma ou outra cigarra que
deixava adivinhar que o estio não iria tardar.
Na quinta já
pouca gente morava, um casal de meia-idade com os seus oito filhos e uma
senhora um pouco mais velha, além de nós, que, embora residíssemos na aldeia,
era ali que passávamos a maior parte do tempo, já que também tínhamos ali uma
casa para viver com desafogo e alguma comodidade.
Os dias
passavam lentamente e os passatempos das pessoas não eram muito diferentes uns
dos outros, enxada na mão e vai de esgravatar a terra, que era desta que tudo
vinha.
Poucos
terrenos eram aráveis, pelo que todos ou quase todos os trabalhos tinham que
ser feitos manualmente.
Nos calços
mais áridos, já estavam dispostos e alinhados alguns montitos de esterco, que
aguardavam o dia da vessada para serem espalhados pela terra, que aguardava
ansiosa pelo fertilizante, que lhe iria proporcionar uma melhor produtividade.
Enquanto eu
apascentava algumas cabeças de gado, minha mãe punha mato novo na corte.
Um cabrito
de tenra idade, incapaz de acompanhar o gado adulto, ficava fechado, fazendo
uma gritaria durante o dia, sempre à espreita de uma oportunidade para fugir, o
que aconteceu precisamente naquele dia.
O danado do
cabrito saiu esbaforido com destino ao rio, talvez confundindo o barulho da
água,
com algo que lhe parecesse familiar.
Como eu
estava por ali perto, não pensei duas vezes e vai de partir desenfreadamente
atrás do maldito, que parecia ter asas nas patas.
O rio ficava
cada vez mais perto, mas a certa altura eu tinha a situação controlada e a sua
captura estava por segundos.
Foi já na
margem que consegui agarrar uma pata do bicho e evitar a sua queda na água,
porém a terra fugiu debaixo dos meus pés e zás! Os dois para dentro de água.
Caindo de
caleira em caleira, sempre com o animal seguro pela pata, chegamos ao açude,
onde a profundidade da água era de tal forma que fiquei sem pé.
Na margem a
aflição da minha mãe era impossível de descrever, gritando por socorro, que não
havia de chegar.
Não tive
outra alternativa que não fosse largar o cabrito e tratar de nadar para a outra
margem, que era a que ficava mais perto e a água mais serena.
Finalmente
em terra firme e a minha mãe mais aliviada daquele instantâneo sofrimento,
continuei na perseguição do bicho, que entretanto também nadou, na mesma
direção.
Agora, já
não havia gritos de aflição, mas sim gritos de, pega, pega!
Cansei o
animal e filei-o com unhas e dentes, devolvendo-o ao curral de onde ele nunca
deveria ter saído.